terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Próxima leitura: Os demônios

Amigos Labhunianos e pessoas que acompanham este blog!

O próximo livro a ser discutido em nosso laboratório, e que será o primeiro de 2010, será Os demônios, de Fiódor Dostoiévski. A edição recomendada é a da Editora 34:

Os demônios
Fiódor Dostoiévski
Tradução de Paulo Bezerra
Editora 34

O próximo ciclo do Laboratório de Humanidades (ano V – Primeiro Semestre) começará em 26/02/2010.

A partir da leitura, reflexão e discussão de obras clássicas, o Laboratório constitui-se em um espaço privilegiado de troca de impressões, idéias e experiências motivadas pela leitura/fruição dos grandes clássicos da literatura. É um espaço aberto aos alunos de graduação, pós-graduação, docentes e funcionários da UNIFESP, assim como para estudantes de outras universidades. Os encontros ocorrem às sextas-feiras das 12 às 13:30 horas na Rua Pedro de Toledo, 650 - Anfiteatro 1 da Prograd.

Coordenação:
Prof. Dante Marcello Claramonte Gallian
Prof. Rafael Ruiz
Monitor:
Yuri Bittar

Maiores informações e inscrições no CeHFi: Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde da UNIFESP, rua Botucatu 720, Edif. Leitão da Cunha/ Museu Histórico da EPM. Fone/Fax: 5576-4258 ou 5549-7584 ou com o monitor Yuri (yuribittar@gmail.com)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

“Dá, pois, a teu servo um coração que escuta...”:

O discernimento como fundamento da santidade (reflexões a partir de literatura profana e sagrada).

Dante Marcello Claramonte Gallian
Coordenador do LabHum


Uma Explicação

Este texto é resultado de uma apresentação feita no II Seminário do Núcleo de Mística e Santidade (NEMES) da PUC-SP, realizado no dia 27 de novembro de 2009, cujo tema foi: “Seria a Santidade Insuportável?” Ela estava inserida na sessão especial de abertura do seminário, “Santidade na Literatura e na História”. Resolvi publicá-la aqui no Blog do LabHum, em forma de artigo, pois deriva diretamente de leituras e reflexões que ocorreram em encontros do Laboratório há alguns anos atrás. Vá Aonde seu Coração Mandar, de Suzanna Tamaro, foi um dos primeiros livros que lemos e discutimos e, como se verá, suscitou e provocou muitas outras novas reflexões e iniciativas que transcenderam os limites do LabHum. Mesmo tendo recebido a sinalização de que este artigo será publicado num número futuro da revista Agnes do NEMES, quis disponibilizá-lo aqui, em primeira mão, como forma de promover nosso Blog e também de atestar o poder seminal do Laboratório de Humanidades, do qual, mais do que coordenador, sou um grande beneficiado.


Da “Pequena” à “Grande” Literatura

Não é de todo incomum que, às vezes, uma obra literária de qualidade mediana, ou melhor, que esteja um tanto longe de ser um clássico, traga alguma imagem ou idéia de grande poder, alguma grande questão. Assim, a despeito da sua fragilidade enquanto conjunto, tal obra, por força dessas imagens ou idéias, se projeta e reivindica para si uma certa atenção e longevidade que a aproxima, até certo ponto, da condição de um clássico. É o que acontece também com algumas canções, fracas no todo, mas cujo refrão é forte o suficiente para garantir um lugar permanente na memória coletiva.

Tal é o caso do pequeno livro da italiana Susanna Tamaro, Vá Aonde seu Coração Mandar (1995). Best seller no início da década de 1990, considerado por muitos como obra de auto-ajuda e celebrado por outros como revelação de uma nova literatura, alternativa à nouvelle vague dos anos 80, marcada pela reverberação dos valores, ou melhor, dos contra-valores da geração contra-cultural dos anos 60.

Independentemente de uma certa fragilidade argumentativa, da superficialidade na utilização do jargão filosófico e da pobreza monocórdica das imagens, símbolos e alegorias utilizados, a narrativa de Tamaro demonstra-se suficientemente forte para evocar questões antropológicas sérias e suscitar reflexões e discussões fecundas e profundas. Pelo menos esta tem sido a minha experiência nos últimos anos, pois há não pouco tempo venho me utilizando – com sucesso – deste instigante livrinho em meus cursos de graduação e pós-graduação na universidade, como provocador de discussões sobre as questões essenciais da existência humana, num contexto de problematizar o tema da humanização através das humanidades.

Além disso, devo confessar também que foi graças a uma discussão suscitada pela leitura deste livro no Laboratório de Humanidades que comecei a delinear uma das linhas de pesquisa mais importantes para mim hoje, geradora de dois projetos de pesquisa a partir do tema “coração”: um sobre a história da querela entre o cárdio e o cerebrocentrismo na época moderna e outro sobre experiências e crenças sobre o coração a partir de testemunhos de transplantados cardíacos.

E eis-me aqui novamente tomando-o como ponto de partida para uma reflexão sobre o discernimento como fundamento da santidade, apoiado na imagem do coração como centro da vida espiritual. Reflexão que remete, inevitavelmente, à grande literatura das Sagradas Escrituras e dos grandes místicos e mestres da espiritualidade. Ou seja, verifica-se aqui um caso clássico de como uma obra “menor” pode se transformar em uma porta de acesso aos grandes clássicos.


Ouvir a Voz do Coração

Vá Aonde seu Coração Mandar é um romance epistolar. Compõe-se de cartas que uma avó escreve para sua neta, filha única de sua filha única que morreu num acidente quando aquela ainda era pequena. A neta, ao chegar à juventude, movida pela rebeldia e pelo espírito de aventura, resolve partir deixando a velha avó, que a criara, sozinha numa velha casa nos arredores de Trieste, nordeste da Itália.

Procurando driblar a solidão e ao mesmo tempo aquietar a alma, a avó, Olga, começa a escrever cartas dirigidas à neta que, no entanto, nunca são enviadas. Começando por descrever nelas seu cotidiano, sua saúde, o estado da casa e do cãozinho que a neta havia deixado, aos poucos as cartas vão se tornando um depositório de reflexões e confissões existenciais, transformando-se numa espécie de autobiografia e de história da família, onde Olga vai procurar resgatar e se reconciliar com o passado, buscando também encontrar uma explicação para o impasse criado entre a neta e ela.

Passando por alto os detalhes e a dinâmica da trama, gostaria de ir direto ao cerne da questão, ao tema principal do romance que é, precisamente, o convite a ouvir a voz do coração. Para Olga, reverberando a sabedoria antiga, “o coração é o centro do espírito”, aquilo que define o que a pessoa realmente é, sua verdadeira personalidade. Sabe, entretanto, que esta forma de entender o coração e a personalidade humana é algo em desacordo com o seu tempo, com a mentalidade contemporânea. Pondera a personagem de Tamaro em uma de suas cartas:

A esta altura dos acontecimentos, o coração já faz pensar em algo ingênuo e barato. Quando eu era jovem, ainda era possível mencioná-lo sem embaraço; agora, porém é um termo que ninguém mais usa. As raras vezes em que é mencionado só o é para que seja lembrada alguma das suas disfunções: já não é o coração em sua totalidade, e sim uma isquemia coronariana, uma ligeira dor atrioventricular; mas dele inteiro, dele como centro da alma humana, já não se fala. (p. 61)


De acordo com Olga, este esvaziamento ou esquecimento do coração enquanto órgão da pessoalidade está profundamente relacionado, no âmbito da história, pela hiper-valorização da mente, fenômeno associado à visão racionalista e racionalizadora da época moderna.

A mente é tão moderna quanto o coração é antigo. Quem liga para o coração – pensa-se então – ainda está perto do mundo animal, do descontrolado, ao passo que quem cuida da razão se aproxima das mais elevadas reflexões. (pp.61-2).


Mas Olga, fundamentada em sua própria experiência de vida, desconfia da validade de tais argumentos e, de maneira desafiadora, questiona:

E se as coisas não fossem assim, se a verdade fosse exatamente o contrário? Se fosse justamente esse excesso de razão o que desnutre a vida? (p. 62).


Para Olga o conteúdo misterioso daquilo que somos, daquilo que devemos ser, emerge justamente do coração. É dele que provém nossa verdadeira personalidade. A sua manifestação e realização, entretanto, não costuma ser compreendida e acolhida pelo mundo, que na sua racionalidade medíocre e padronizadora, vai encarregando-se de domesticá-la, caracterizando-a. Como conta Olga, numa de suas cartas mais reveladoras e inspiradas, em sua mais tenra infância “respirava e sabia haver uma ordem superior das coisas de que eu fazia parte, junto com todas as demais coisas que via. [E] apesar de ainda não conhecer a música, alguma coisa cantava dentro de mim...” (p. 47)

Vasculhando suas memórias da infância, Olga assim identifica o nascimento e a revelação de sua personalidade: como uma “melodia”, “sem refrão definido”, mas soprando com um “ritmo regular e poderoso perto do meu coração [na verdade poderíamos dizer, dentro, no mais íntimo do seu coração] e este sopro [continua Olga] expandindo-se por todo meu corpo e mente, produzia uma grande luz, uma luz de dupla natureza: a sua própria, de luz, e a da música. Sentia-me feliz por existir, e além desta felicidade para mim nada mais havia.” (idem).

Não deixa de chamar a atenção aqui a semelhança desta descrição com a de outra personagem feminina, também profundamente reflexiva e profunda, Joana, plasmada por Clarice Lispector no romance Perto do Coração Selvagem (1998). Tal como Olga, em tom confessional e intimista, a personagem, talvez de forma superior do ponto de vista literário, evoca a grande experiência, ao mesmo tempo mística e física, difícil em suma, da revelação da personalidade profunda de profundis nomeia Joana – na trama complexa e contraditória da vida. Mas, deixando por enquanto esta tentadora senda de análise – a da comparação entre as obras de Clarice e Suzana Tamaro – voltemos para nossa trilha original.

Olga, mais adiante em sua narrativa, como que justificando e, ao mesmo tempo, procurando atestar a veracidade dos acontecimentos rememorados, interpela a neta: “Talvez você ache um tanto estranho ou excessivo que uma criança possa intuir algo assim.” Porém, ela mesmo responde: “Infelizmente, estamos acostumados a imaginar a infância como um período de cegueira, de falta, e não como uma fase de muita riqueza. E, apesar de tudo, bastaria fitar os olhos de um recém-nascido para percebemos que é isso mesmo.” (idem).

Olga está convencida da realidade de sua experiência, da música que soprava desde o centro do seu coração e invadia todo o seu ser, informando-a, transformando-a, ela mesma em “pura música”. Sabe que não se tratava de uma brincadeira de criança ou tampouco de uma evocação ilusória de uma velha frustrada em busca de um sentimento perdido.

Tão séria foi para Olga esta experiência que ela não passou desapercebida no mundo dos adultos. Assim, conta nossa protagonista, seja em casa, seja na escola, o “espírito do mundo” foi se encarregando de reprimir, enquadrar, chantagear, enfim “educar”a frágil criatura musical que então despontava. Conta ela:

Meu pai e minha mãe não se cansavam de me repreender devido ao meu hábito de cantar. Uma vez, durante o jantar, até levei um bofetão – o meu primeiro bofetão – porque deixara escapar uma pequena ária. “Não se canta na mesa”, trovejou o meu pai. “Não se canta se não se é cantor”, reforçou minha mãe. Eu chorava e repetia entre lágrimas: “Mas sinto a música por dentro”. Qualquer coisa que não estivesse ligada ao mundo concreto da matéria era, para meus pais, absolutamente incompreensível. Como seria então possível eu guardar a minha música? Deveria ter, no mínimo, o destino de um santo. Mas o meu, na verdade, era o destino cruel da normalidade. (pp. 50-1).


Interessante notar como a associação entre música, coração, personalidade e santidade – associação esta que evoca uma antiga e sólida tradição – aparece aqui explicitada. A música, que brota do coração, indica e revela a manifestação de uma personalidade única, original que promete desabrochar em realização humana plena, saudável, santa. O confronto com o mundo, porém– para evocar novamente esta mesma antiga e sólida tradição – irá comprometer o desenvolvimento desta trama, determinando o desvirtuamento do processo de personificação em caracterização. Como explica a própria Olga:

Durante todo o primário, travou-se uma luta feroz entre a vontade de permanecer fiel ao que sentia dentro de mim e o desejo de aderir, embora considerando-o falso, àquilo em que acreditavam os demais. [...] Aos doze, quatorze anos, já possuía uma triste estabilidade. As grandes perguntas metafísicas tinham-se pouco a pouco afastado para dar lugar a novas e inócuas fantasias. [...] Pouco a pouco a música desapareceu, e com ela o sentido da felicidade profunda que me acompanhara nos primeiros anos de vida. [...] Com o passar dos anos, abandonei-me a mim mesma, a parte mais profunda de mim, para tornar-me outra pessoa, aquela em que meus pais esperavam que eu me transformasse. Deixei de lado a minha personalidade para adquirir um caráter (grifo meu). O caráter, como você certamente irá descobrir, é muito mais apreciado no mundo que a personalidade. Mas o caráter e a personalidade, ao contrário do que muitos pensam, não se dão lá tão bem, e na maioria dos casos o primeiro exclui peremptoriamente o segundo. [...] Não pense que foi fácil e natural deixar de lado a personalidade para aparentar um caráter. No fundo de mim, alguma coisa continuava a rebelar-se, uma parte desejava continuar sendo eu mesma, ao passo que a outra, para ser amada, queria adaptar-se às exigências do mundo. Uma batalha e tanto! (pp. 49-51)


De maneira simples, quase singela, as palavras de Olga, personagem de Suzanna Tamaro, nos lançam para o cerne de uma das questões mais essenciais da existência humana: o conflito, a batalha (imagem extremamente forte e evocativa) entre “personalidade” e “caráter”; entre as “exigências do coração” e as “exigências do mundo”. E isso, sem dúvida, nos remete à imagem e ao tema da luta ascética que é o próprio fundamento da idéia de santidade – santidade enquanto realização plena da humanidade, da humano salutis.


Entre o Profano e o Sagrado

É aqui então que a literatura menor funciona como uma “janela” que se abre ou como uma “alavanca” que nos impulsiona em direção ao clássico, à grande literatura; e, de certa forma, onde também, concomitantemente, se dá a passagem do profano para o sagrado. A narrativa de Suzanna Tamaro nos remete por caminhos inusitados à narrativa mística de São Paulo, mais especificamente para sua Carta aos Romanos, onde admoestando os primeiros cristãos da capital do império, escreve:

E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando a vossa mente, a fim de poderdes discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, agradável e perfeito. (Rm 12, 2).



Eis ai, de forma clara, explícita, o tema da luta contra as exigências do mundo. São Paulo convida àqueles que buscam a santidade (o fazer aquilo que é bom, agradável e perfeito) a não se conformarem com o mundo, isto é, não tomar a forma do mundo, o seu caráter. Pois na verdade, o cristão deve antes tomar a forma do Cristo, seu verdadeiro modelo, sua verdadeira fôrma – idéia esta mais tarde desenvolvida por Santo Agostinho (Cf. Comentário da Primeira Epístola de São João, 1989, p. 193). Neste sentido, portanto, o cristão deve transformar-se, renovando a sua mente, desenformando-a da fôrma do mundo e procurando conformá-la com a fôrma de Deus, fôrma esta que, como o próprio S. Paulo irá precisar em inúmeras passagens, encontra-se impressa no coração humano. Desta forma, renovada, livre da conformidade com o mundo, a mente pode exercer a sua verdadeira função que é a de discernir. Discernir, em primeiro lugar, entre a voz do mundo e a voz do coração e, depois, discernir entre as diversas vozes que vem do coração. Sim, pois a voz do coraçãona verdade se apresenta como uma polifoniade vozes às quais é preciso também discernir, a fim de “fazer aquilo que é bom, agradável e perfeito”, já que se é no coração humano que habita o Espírito Santo, é nele também que se encontram os espíritos malignos e toda a maldade que assola o homem – “Com efeito”, ensina Jesus Cristo aos seus discípulos, “é do coração que procedem más intenções, assassínios, adultérios, prostituições, roubos, falsos testemunhos e difamações.” (Mt 15, 19).

A ciência do discernimento que advoga São Paulo, é pois uma ciência de múltiplas dimensões, que apresenta fases ou graus. Num primeiro momento cabe discernir entre o espírito do mundo e o espírito do coração, fonte da verdadeira personalidade, da verdadeira santidade. Tal discernimento é fruto da renovação da mente, que inconformada com os apelos do mundo, volta-se para os apelos do coração. Porém, uma vez voltada para dentro, não apenas a mente, mas também o próprio coração deve tornar-se apto a discernir. Do discernimento da mente passamos ao discernimento do coração, tal como é evocado em outro texto bíblico, desta vez do Antigo Testamento: o Primeiro Livro dos Reis.

No capítulo terceiro deste narra-se que Salomão, filho de Davi, depois de se estabelecer como herdeiro no trono de Israel, vai a Gabaon “para lá oferecer um sacrifício” a Iahweh, pois lá “era o lugar alto mais importante”. Estando em Gabaon, Iahweh aparece-lhe em sonho e diz: “pede-me o que te devo dar”. Salomão, depois de considerar a grande e difícil missão que lhe cabe, qual seja, a de governar e cuidar do povo de Israel, faz o seu pedido a Iahweh: “Dá-me pois a teu servo um coração que escuta” (grifo meu). Ora, “agradou ao Senhor que Salomão tivesse pedido tal coisa”, pois ao invés de poder, honra, glória e riquezas materiais, Salomão pede-lhe aquilo que é o fundamento mesmo da fidelidade, da santidade. E por isso, além de dar-lhe o que pedia, deu-lhe também o que não pedia, aquilo que o Senhor considera apropriado para a sua condição e missão:

“Porque foi este o teu pedido, e já que não pediste para ti vida longa, nem riqueza, nem a vida dos teus inimigos, mas pediste para ti discernimento para ouvir e julgar, vou fazer como pediste: dou-te um coração sábio e inteligente, como ninguém teve antes de ti e ninguém terá depois de ti. E também o que não pediste, eu te dou: riqueza e glória tais, que não haverá entre reis quem te seja semelhante. E se seguires os meus caminhos, guardando os meus estatutos e os meus mandamentos como o fez teu pai Davi, dar-te-ei uma vida longa.” (1 Rs 3, 11-14).


Um coração sábio, inteligente, que sabe (distingue os sabores), escuta, discerne, compreende: eis o fundamento para realizar aquilo que é bom, agradável, perfeito; para viver com sabedoria e santidade. Depois do discernimento da mente, é preciso adquirir o dom do discernimento do coração, para saber distinguir a voz do Espírito da voz da carne; a voz de Deus da voz das paixões e dos espíritos impuros, como mais tarde iria ensinar Diádoro de Focitéia, monge hesicasta do século V, um dos precursores do eremitismo cristão oriental (Cf. DIADOQUE DE PHOCITÉ, 1997).



De volta à literatura profana de Suzanna Tamaro, vamos encontrar Olga já em suas últimas cartas, narrando o seu encontro com “um jesuíta alemão pouco mais velho” que ela. Tal encontro deu-se em função de uma reaproximação da religião depois da morte de seu marido, o qual Olga havia traído na juventude. Percebendo a sua pouca familiaridade e certa indisposição com os rituais religiosos e procedimentos clericais, o padre propôs que conversassem enquanto davam longas caminhadas pelas montanhas vizinhas.

Ao contrário dos demais padres que eu conhecia – escreve Olga – ele ignorava as palavras de condenação ou de consolo, toda a pieguice melosa das mais óbvias mensagens era para ele estranha. Havia uma espécie de dureza nele que, à primeira vista, podia parecer altivez. (p.123)


É através deste padre, entretanto, que Olga irá aprender as verdades mais profundas sobre as realidades e as exigências do coração, assim como, a partir daí, irá perceber a importância de saber discernir.

Em sua opinião, o coração do homem era como a Terra, metade iluminada pelo sol, metade pela na sombra. Nem mesmo os santos tinham luz em toda parte. “Não há como não termos sombras”, dizia, “pelo simples fato de termos um corpo. Somos como as rãs, anfíbios, uma parte de nós vive aqui embaixo, e a outra tende para cima. Viver consiste nisto, ter consciência e saber disso, lutar para que a luz não desapareça vencida pela sombra. Desconfie de que é perfeito”, dizia, “de quem tem as soluções prontinhas no bolso, desconfie de tudo, exceto do que o seu coração lhe disser.” (idem).


Orientada pelos conselhos do jesuíta alemão Olga começa praticar a arte do discernimento, a mesma arte descrita e aconselhada pelos mestres bíblicos do Antigo e Novo Testamentos, na busca por reencontrar o caminho e o destino perdidos lá atrás na infância: o destino de um santo. Num primeiro momento, Olga considera que talvez possa parecer tarde demais, já que ela se encontra agora no fim da vida, porém, o simples fato de se perceber e compreender o porquê dos descaminhos da vida, mesmo que já se tenha percorrido a quase totalidade do trajeto, adquire um significado libertador, com força suficiente para redimirtoda a existência. Compreendendo que todos os seus erros, falhas e também todas as suas frustrações e infelicidades passadas foram conseqüência de uma infidelidade cordial, Olga, instruída agora na ciência do discernimento da mente e do coração, revela em suas cartas para a neta, a sua experiência de renovação que determina uma nova atitude vital: a da escuta atenta do coração. “Talvez você só me possa entender quando for mais velha”, pondera a avó, “quando tiver percorrido aquele misterioso caminho que da intolerância leva à compaixão”. De qualquer forma, entretanto, ainda que toda esta descoberta e experiência tenha ocorrido tão tardiamente em sua vida, sua força é suficiente não apenas para libertá-la do seu passado, como também influenciar, em forma de testemunho, o futuro daqueles a quem ela é transmitida. Arrematando a sua última carta – e o próprio romance – Olga dá o seguinte conselho à sua neta:

E então, quando se abrirem vários caminhos e você não souber qual escolher, não tome um qualquer, tenha paciência e espere. Respire com a confiante profundidade com que respirou no dia em que veio ao mundo, não deixe que coisa alguma a distraia, espere e continue esperando. Fique parada, em silêncio, e ouça seu coração. Quando enfim ele falar, levante-se e vá aonde ele a quiser levar. (p. 136).


Talvez, para alguns, os conselhos de Olga soem um tanto piegas ou patéticos, porém para muitos, sensibilizados pelas experiências frustrantes e desumanizadoras que séculos de racionalismo radical ajudaram a proporcionar, tais palavras podem significar o início de um movimento que, a partir da leitura descompromissada de um best seller, acaba por desembocar na redescoberta inusitada dos grandes clássicos. E nestes, depositários privilegiados das grandes e profundas experiências humanas, vamos encontrar as fontes de uma sabedoria tão esquecida quanto necessária: a sabedoria do discernimento, fundamento da realização plena da personalidade, da saúde, enfim, da santidade.



Referências Bibliográficas


AGOSTINHO, Santo. Comentários da Primeira Epístola de São João. São Paulo, Paulinas, 1989.


BÍBLIA De Jerusalém. Tradução do texto em língua portuguesa direto dos originais hebraico e grego. São Paulo, Paulinas, 1985.


DIADOQUE DE PHOCITÉ. Oeuvres Spirituelles. Trad. e Org. Édouard des Places. Paris, Éditions du Cerf, 1997.


LISPECTOR, Clarice. Perto do Coração Selvagem. Rio de Janeiro, Rocco, 1998.


TAMARO, Suzanna. Vá Aonde Seu Coração Mandar. Trad. Mario Fondelli. Rio de Janeiro, Rocco, 1995.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

O Laboratório de Humanidades: uma experiência de afeto

Por Licurgo Lima de Carvalho
Participante do LabHum

Nietzsche escreveu que nenhuma ideia seria suficientemente confiável se não concebida durante longa caminhada. É que o filósofo romântico prezava o vigor, a potência, embora ele mesmo tivesse uma saúde frágil. E dizem que Nietzsche admirou, até o fim, Montaigne e Goethe, grandes sensuais que não temiam o pecado. Ele desprezava a covardia, sobretudo as morais.

E eu, também um caminhante, dou créditos a Nietzsche: sofro de inspirações justamente quando percorro, a pé, longos trajetos. Mas é especialmente na sexta-feira, dia do Laboratório de Humanidades, que meus pensamentos mais agudos tocam “a ponta afiada do infinito” e dançam alegremente com os “seres moventes do céu”, nas imagens do poeta Baudelaire, eterno inspirador desse blog.

Enfim, desses encontros semanais saio profundamente afetado. O Laboratório de Humanidades é um lugar privilegiado dentro da Universidade, onde nos reunimos semanalmente para discutir, em grupo, clássicos da literatura. Recentemente fui criminoso, matei o rei, usurpei seu trono. Também invoquei a maldade, mudei de sexo, enlouqueci. Mas antes lutei contra as forças do mal, fui um mocinho bom e justo. E agora me preparo para viver uma mulher intensa, perplexa diante de si e da vida. Assim, de Tolkien a Clarice Lispector, passando por Shakespeare, inaugurei minha participação no LabHum, como carinhosamente chamamos essa experiência de humanização.

Humanizar, na concepção do Prof. Dante Gallian, coordenador do LabHum, não é uma questão de verniz, de cobertura de bolo. “Antes é preciso mexer na massa, alterar seus ingredientes”. Não se trata, portanto, de disfarce, de ajuste, mas de comprometimento e vontade.

Mas qual o sentido de “humanizar” o próprio homem? Estaríamos nós, os homens, nos tornando menos humanos? O fato é que nos dias de hoje o termo desumanização nem causa estranheza e frequentemente nos deparamos com os tais “projetos de humanização”, sobretudo em setores da sociedade que lidam com o homem em sua dimensão mais frágil, ou seja, mais humana, tais como hospitais, empresas de convênio médico e afins.

Aprendi com o Prof. Dante que esses “projetos” são na verdade meras tentativas de se amenizar os efeitos colaterais, as distorções causadas pela Modernidade que tenta excluir do homem o transcendente, o não controlável, o não dominável, o não utilizável, tudo em nome da razão que deve estar a serviço do progresso incessante, embasada numa visão puramente cientificista e tecnológica de que somos seres perfectíveis, ajustáveis, programáveis tal qual uma máquina deve ser.

Mas como homem é homem e não máquina, não somos passível de treinamento. Tampouco ficamos mais felizes, ou conformados, seguindo manuais de instrução. Nesse sentido o LabHum é quase terapêutico já que propõe mudanças na estrutura do homem impulsionadas pelo poder que tem a literatura de afetar e ampliar nossa perspectiva existencial.

Nas palavras de Rozélia, labhuniana como eu, o Laboratório de Humanidades é como o “muro de Berlim que se abre entre nós e o mundo”. “É um espaço para falar e ouvir”. É claro que ninguém fala nada de muito íntimo e o foco sempre é a obra literária, mas há o movimento de se perceber no grupo e no outro, de negar e reconhecer certos aspectos da personalidade que se encontrava adormecido. Então, ao mesmo tempo em que é uma experiência altamente intelectual é também uma vivência de reflexão subjetiva, de autoconhecimento, pois ao me envolver, e opinar sobre os personagens, sinto-me exposto na própria carne. Por fim, o que me resta senão elaborar esses sentimentos em mim? O aprendizado que se dá não é apenas intelectual, mas, sobretudo, humano.

Nas palavras do Prof. Dante, no blog do LabHum:

Explorar e aprofundar a experiência afetiva que se produz ao nos depararmos com uma obra literária, é o objetivo primevo do Laboratório de Humanidades, pois sabemos que sem o envolvimento integral da pessoa, enquanto ser dotado de sentimento, inteligência e vontade, não pode haver uma efetiva experiência de humanização. Por isso, antes de adentrarmos em discussões filosóficas, sociológicas ou históricas mais profundas – que não apenas são desejáveis, mas inevitáveis – incentiva-se, antes de tudo, a manifestação e compartilhamento das sensações, das emoções. Tal dinâmica não apenas amplia a própria experiência da leitura individual do sujeito, como abre novas possibilidades de leitura para os outros que o escutam. Começa a experiência da “ampliação da esfera do ser”, como bem coloca Teixeira Coelho em seu ensaio sobre “A Cultura como Experiência”.

[...] Por fim, percebe-se o impacto de toda esta experiência humanística quando, após um certo tempo de participação no Laboratório, começa a se verificar como esta “ampliação da esfera do ser” passa a interferir na prática profissional e na vida como um todo, realidade aferida por não poucos colaboradores desta atividade. O processo, afetivo e intelectivo, detonado pela experiência da leitura e desenvolvido pela dinâmica do compartilhamento e discussão coletiva, completa-se na esfera volitiva, desencadeando mudanças de visão e atitudes; mudanças estas próprias de um movimento de “ampliação”, enfim de humanização.

E foi na “ampliação da esfera do ser” que surgiu essa necessidade de me denunciar publicamente. “Escrever é um ato obsceno”, digitei para minha amiga Eliana quando lhe contei sobre “O Gosto do Infinito”. Mas sei que não é só isso: os desdobramentos dessa experiência certamente serão muitos, a começar pelo extraordinário DESEJO DE CAIR!

E com esse aparente absurdo encerro, na promessa de voltar a escrever sobre essa idéia tão maluca quanto genial de Maurice Blanchot, ensaísta francês.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

A Tragédia, o Bode, e Macbeth

Por Licurgo Lima de Carvalho
Participante do LabHum

No “Laboratório de Humanidades” estamos terminando o ciclo Macbeth. Depois da trilogia “O Senhor dos Anéis” veio Shakespeare a me reconciliar com a concepção trágica da vida. Tragédia vem do grego “tragos” e significa bode, ou seja, viver a tragédia é estar no lugar do bode a caminho do sacrifício: o homem sem autonomia e que luta eternamente contra o destino, consciente de sua derrocada final.

Fatalista, pessimista, concepção trágica demais? Talvez. Mas, embora na vida diária seja importante acreditar que de algum modo venceremos no final, é também humanamente necessário que aceitemos nossas limitações, que encaremos o fato de que pouco na vida realmente está sob nosso controle, que viver é mesmo estar em contato permanente com essa fragilidade que somos. Então, ao contrário de cair no desencanto, encarar a tragédia na vida real ou por meio dos heróis das obras da literatura clássica, traz a ideia de que vale a pena continuar lutando contra o destino, de que essa luta por si só é a vida, e de que é pelos vitoriosos embates cotidianos que nos percebemos corajosos e aptos a enfrentar a vida com dignidade. A morte virá, é certo, mas até lá muito som e muita fúria agitará nossa sombra ambulante.

Agora falando de Macbeth, foi uma catarse. Li de uma tacada só. Ao terminar, após longa caminhada, tive anseios de escrever e teclei com toda lucidez. Veja o que escrevi, exatamente, no momento catártico:

Como o mago Gandalf, que para se tornar o cavaleiro branco precisou passar pelos abismos de fogo e pela escuridão das águas profundas, mergulhar em Macbeth e no seu reino de ambição, intriga, superstição e assassinatos também me iluminou. Foi por Macbeth que redescobri a miséria da escuridão. Foi por Macbeth que, paradoxalmente, me veio à luz essa compreensão: um mergulho nas profundezas mais vis revigoraria meu espírito a me revelar a vida real, diferente de um croqui cinza riscado sobre o papel, mas vida que é perspectiva e sombra, cor e volume.

Meio que por superstição fiquei habituado a uma leitura solar. Nada de pessimismo, desamparo e miséria. Tudo deveria afirmar. Nada remeter ao tormento, à dúvida, ao ressentimento. Milagrosamente tudo deveria me salvar do terror da finitude, do tempo que se acaba, da fraqueza. Hoje finalmente me libertei: vou com Macbeth e Rimbaud passar uma temporada no inferno.

Finalmente vejo o quanto essa minha negação do lado visceral e tenebroso da humanidade foi capaz de me desumanizar. Mesmo sem saber, de repente agi como Macbeth ao acreditar em vaticínios de bruxas e maus espíritos. É como se a maldição sobreviesse a mim se com a maldição eu tratasse, ainda que por meios solares, como a arte e a literatura. Passei então à covardia e ao receio de me ver outra vez rendido ao desencanto existencial que um dia tomou conta de mim quando li “A Náusea”, de Sartre.

Quanto a Sartre e os meus 20 anos, contarei depois essa louca iniciação. Também desvendarei o Laboratório de Humanidades.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O Bem, o Mal – é tudo igual? O drama das palavras e paixões em Macbeth de Shakespeare

Dante Marcello Claramonte Gallian
Coordenador do LabHum

É curioso observar como, numa época tão pródiga de palavras como a nossa, estas acabem sendo tão desvalorizadas. Talvez porque se aplique aqui também a lei fundamental do mercado: quando algo sobra, acaba, inevitavelmente, perdendo o valor. E, palavras, assim como aparelhinhos eletrônicos e microchips encontram-se ad nauseam em nosso mundo. São miríades de miríades pronunciadas, escritas e difundidas nas mais diversas e tecnológicas maneiras todos os dias, minutos, segundos. Elas superpovoam nosso campo de visão nas ruas, nas telas de nossos computadores, celulares, “i-trecos”, ressoam incontroláveis pelas ondas do rádio, mps 3,4,5,6... nas reuniões de escritório, salas de aula, bares, elevadores... Há uma superpovoação e uma superprodução de palavras, de maneira que ninguém já as dá mais atenção. São proferidas de maneira automática, em escala industrial, e recebidas como algo praticamente desprovido de impacto ou significado, tal como consumimos a maior parte das coisas que adquirimos no mercado. Afinal, palavras, são apenas palavras, e nada mais do que meras palavras.

Mas, será isso mesmo? Seriam as palavras nada mais do que palavras? O drama shakespeareano Macbeth parece nos advertir do contrário: as palavras são coisa séria; elas são muito poderosas, podendo determinar a nossa forma de ser e agir.


Segundo Jorge Larrosa Bondía (2002), professor de lingüística da Universidade de Barcelona, “as palavras produzem sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam como potentes mecanismos de subjetivação.” E continua o professor, numa espécie de profissão de fé da palavra:

Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco. As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. E pensar não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com as palavras. (p. 21).


Ao concordar com Larrosa, com a crença no poder e na força das palavras, com a convicção de que fazemos coisas com as palavras e que as palavras fazem coisas conosco, então não podemos acreditar ingenuamente nas Três Bruxas que abrem o drama de Shakespeare dizendo: “O Bem, o Mal – é tudo igual.” (Ato I, cena 1) Apesar de ser esta exatamente a perspectiva que não apenas vigora em nosso contexto mental, mas que inclusive lhe dá sustentação.

Não foram poucos os críticos que apontaram o olhar profético de Shakespeare frente à modernidade que então recém se inaugurava. A sua história sobre Macbeth parece querer dizer que aquilo que parece ser pode, muito bem, não ser na realidade, ou seja, que Bem e Mal não é tudo igual, e que com as palavras não vale o tanto faz.


Macbeth, tane de Gladis, é um grande nobre de velha cepa escocesa. Diante da ameaça traidora que paira sobre seu reino e sobre seu rei, não hesita em enfrentar, juntamente com Banquo (outro grande nobre) o perigo e a própria morte “como o favorito do valor” (Ato I, cena 2). Tendo seus feitos noticiados ao rei Duncan, este lhe confere título maior, tane de Cawdor, recém retirado do indigno traidor vencido.

Antes, porém, que a boa nova lhe seja comunicada por boca humana, Macbeth é avisado por três criaturas estranhas (bruxas, indica Shakespeare) que lhes aparece, a ele e a Banquo, numa charneca próxima de onde se travara a derradeira batalha. Como sabemos, as três parcas não apenas predizem a sua promoção imediata a tane de Cawdor, como também a própria glória real, ainda que (terceira profecia) não transmitida a seus descendentes, já que aos de Banquo ela estaria reservada.

As palavras proferidas pelos “agentes das trevas” (nas palavras de Banquo, Ato I, cena 3), afetam sobremaneira o pobre e desavisado Macbeth, que imediatamente começa sentir o seu efeito insidioso e inquietante. Instantes depois de haverem desaparecido as bruxas, chegam os arautos do rei informando-lhe do seu novo título: tane de Cawdor. Mal tinha tido tempo de refletir nas palavras proferidas e a profecia já começava a se cumprir.


Sabemos que as palavras, quando são mais do que meras palavras, não se limitam a um simples som, vocábulo ou conjunto de letras e sílabas. As verdadeiras palavras, logos em grego, verbum em latim, são como cápsulas que encerram um conteúdo denso, potente, capaz de afetar, mobilizar, vivificar, envenenar, matar. Segundo Larrosa , a tradução que normalmente se faz da palavra grega logos por ratio, latina, origem da vernácula razão, é na verdade mais que uma tradução, uma “traição, no pior sentido da palavra” (p.21). Assim, ao se tomar a definição de homem de Aristóteles, zôon lógon échon, a tradução mais fiel seria “vivente dotado de palavra” e não “animal racional”, como se costuma encontrar normalmente. Ora, tal noção manifesta de forma inconteste a importância da palavra enquanto elemento definidor do ser humano.

O homem é um vivente com palavra. E isto não significa que o homem tenha a palavra ou a linguagem como uma coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas que o homem é palavra, que o homem é enquanto palavra, que todo humano tem a ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido de palavras, que o modo de viver próprio desse vivente, que é o homem, se dá na palavra e como palavra. Por isso, atividades como considerar as palavras, criticar as palavras, eleger as palavras, cuidar das palavras, inventar palavras, jogar com as palavras, impor palavras, proibir palavras, transformar palavras etc. não são atividades ocas ou vazias, não são mero palavrório. (idem)


Dizíamos que as palavras têm conteúdo denso e potente. Isto porque elas têm qualidades. Ou seja, as palavras também são gesto, são cena, são expressão. Todo este universo de conteúdo e forma que cerca, informa e qualifica a palavra, e que é a mesma palavra, determina o seu efeito e sua potência. Aqui, no drama shakespeareano a sua “qualidade” é, fundamentalmente, “profética”; quer dizer, uma palavra proferida por alguém que simplesmente a professa, ou seja, a transmite, a repete, tal como lhe foi dita por um Outro, invariavelmente maior, mais poderoso, sobrenatural – literalmente, alguém acima da natureza mutável, mortal.

Não é pouco conhecida a importância que tiveram os profetas na história da Civilização Ocidental. Na tradição judaico-cristã, a palavra profética comunica os sentimentos de Deus em relação aos homens, em especial ao seu povo escolhido, e prediz o futuro, conclamando assim a conversão dos corações, o arrependimento, a contrição. Neste contexto, a profecia pode tanto anunciar, prever, como também simplesmente advertir o futuro, futuro este que pode ser “mudado”, caso a palavra dê bons frutos nos corações e nas ações dos homens (Cf. Lc 3, 9).

Profetas também encontramos em outras tradições, como entre os gregos, onde as ptonisas e as sibilas aparecem servindo aos diversos oráculos, sendo o de Delfos (o qual até Sócrates vai consultar diante da inquietante questão sobre a sua incomparável sabedoria) o mais famoso. E assim como os deuses, os demônios também têm seus profetas. Neste caso, como bem fica demonstrado no drama escocês de Shakespeare, a palavra profética é proferida não para advertir-nos e salvar-nos, mas “para perder-nos”, como bem informa Banquo na cena 3 do ato I.

Antes, porém, de consumar a sua obra, toda palavra precisa primeiro ser ouvida, ou melhor, ser aceita. As palavras proféticas das três bruxas só surtem efeito em seus destinatários porque se apresentam “sob a cor da verdade” (que o diz é o próprio Macbeth, Ato V, cena 5), como sabiamente considerava Banquo, a quem já citamos anteriormente. Eis a frase completa: “E muita vez, para perder-nos, os agentes das trevas são verídicos: captam-nos com inocentes bagatelas por afundar-nos nos piores crimes”.

A própria artífice dos malefícios em forma de profecia (de palavras), Hécate, senhora das bruxas, revela que tal sortilégio, “tão rico de artificiosa ilusão” é o que afundará o nobre Macbeth “em confusão”, ao lhe infundir “a temerária confiança” – pois esta, “quando por demais, é a perdição dos mortais” (Ato III, cena 4).

Eis pois o conteúdo, a qualidade e o poder deste tipo de palavra: revestida da “cor da verdade”, adentra o entendimento e chega ao coração, atiçando as paixões. O belo, bravo e fiel Macbeth, virtuoso e favorito vassalo do rei, que há pouco tinha demonstrado toda sua força e valor lutando corajosamente contra temíveis inimigos, vê seu coração sucumbir não diante de lanças e espadas, mas diante da palavra de três tristes e repugnantes bruxas.

As palavras adentram-no com sua capa de brilho e verdade, espicaçando-lhe a cobiça e confundindo-lhe a razão:

Esta insinuação sobrenatural não pode ser má, não pode ser boa. Se má, por que certeza de sucesso me dá neste começo de verdade? Pois sou Tane de Cawdor. E se boa, por que assim cedo à imagem pavorosa que os cabelos me eriça e faz meu firme coração palpitar contra as costelas fora do que é normal na natureza? Os temores presentes são mais fracos do que as horríveis imaginações. Meu pensamento, onde o assassínio é ainda projeto apenas, move de tal sorte a minha simples condição humana que as faculdades se me paralisam e nada existe mais senão aquilo que não existe. (Ato I, cena 3)


A palavra das bruxas, que para Banquo, homem prudente – de acordo com o próprio Macbeth, “nele aponta algo que é de temer: tem grande audácia; e à têmpera indomável de su’alma alia uma prudência que encaminha o seu valor a agir com segurança” (Ato III, cena 1) – é algo a ser posto sob suspeita, a ser examinado ou mesmo descartado dada a qualidade de seus emissores, para Macbeth é algo “relativo”: “não pode ser má, não pode ser boa.” Este flerte com a palavra temerária é já o princípio de sua aceitação e a sua aceitação é já o ceder ao seu conteúdo, ao seu poder. Os primeiros sintomas logo são sentidos: os calafrios e palpitações que indicam que algo “fora do que é normal na natureza” tomou conta do coração e da imaginação, submetendo a inteligência e a vontade.

É verdade que, num primeiro momento, Macbeth procura resistir e lutar contra o poder envenenador: “Se a sorte me quer rei – considera consigo mesmo, procurando afastar a terrível tentação – há de coroar-me sem que eu me mexa.” (Ato I, cena 3) Entretanto, o compartilhamento das palavras com a sua esposa, Lady Macbeth, acabarão por dinamizá-las e potencializá-las, de forma que estas, encontrando um terreno ainda mais fértil no coração da mulher, retornarão ao destinatário da profecia com maior potência ainda, fazendo ceder as últimas resistências. Frente às hesitações do atormentado marido, Lady Macbeth despeja-lhe no coração, pelos ouvidos, argumentos suficientemente fortes para faze-lo tomar a “firme decisão”: “já sinto tensa em todo o meu corpo cada fibra para cumprir o ato terrível. Vamos! Respirem inocência, enganadoras, tuas feições: falsa aparência esconda no falso coração a trama hedionda!” (Ato I, cena 7).

Instigado pelo poder sedutor das palavras proféticas, Macbeth vê alterar-se em seu coração a medida das paixões. A ambição, paixão tão própria de corações nobres, instiga-se, cresce e transborda, arrastando na sua correnteza os diques da razão. Como observaria Blaise Pascal, pouco menos de um século depois de Shakespeare: “quando as paixões são as senhoras são vícios, e então dão à alma seu alimento, e a alma com elas se nutre e se envenena.” (Pensamentos, 502).

Despertadas e mobilizadas pelos sentidos e, principalmente, pelas palavras que chegam ao interior através dos sentidos, as paixões alimentam nossa alma, nosso ser. Entretanto, segundo Pascal, “é preciso servirmo-nos delas como de escravos (...) dizendo a uma: Vai, e [a outra] Volta. Sub te erit appetitus [‘sob ti estarão teus desejos’ (Gen, 4,7)]” (idem); para que elas não se tornem senhoras e não nos envenenem, desencadeando nossa “perdição”, como bem advertia Banquo. “As paixões assim dominadas são virtudes”, explica o filósofo, para quem “a avareza, a inveja, a cólera, o próprio Deus as atribui a si; e são tanto virtudes como a clemência, que são também paixões.”

Essa mesma idéia aparece de forma condensada e lapidar no drama shakespeareano através da boca de Macduff, que em diálogo com Malcolm, filho do rei assassinado, afirma: “A intemperança, quando ilimitada, é tirania em nós da natureza.” (Ato IV, cena 3). E – desenvolvendo o tema, desta vez através da voz do médico chamado a socorrer a “loucura” de Lady Macbeth – “quando os atos violam a natureza, eles produzem desordens também contra a natureza.” (Ato V, cena 1).

Macbeth, como vimos, desde o momento em que ouviu as maléficas palavras e as acolheu em seu coração, começa a nele sentir algo “fora do que é normal na natureza” (Ato I, cena 3). E, na medida em que a trama se desenvolve e o ato assassino se consuma, este estado de desordem e tirania do contra-natural vai crescendo e dele se apoderando, lançando-lhe numa espiral de medo, ansiedade, melancolia. Desde então já não consegue dormir “o sono inocente, o sono dissipador das preocupações, morte da vida de cada dia, banho após a dura labuta, bálsamo de almas doridas, principal alimento no banquete da grande natureza!” (Ato II, cena 2). E a tristeza, ao invés da alegria, é o prêmio encontrado na consumação de seus desejos: “Tudo é futilidade; honra e renome estão mortos; o vinho da existência esgotou-se até a borra e só lhe resta borra e esta triste adega.” (Ato II, cena 3).

O mesmo acontece, surpreendentemente, com aquela que depois de haver invocado os “espíritos sinistros” e os “ministros do mal”, pedindo-lhes que lha dessexuassem, que lha espessassem o sangue, “prevenindo todo acesso e passagem ao remorso, de sorte que nenhum compungitivo retorno da sensível natureza” abalasse a sua “determinação celerada”, instigando assim “o que é contrário aos sentimentos naturais humanos” (Ato I, cena 5); mesmo a esta que parece ser mais uma encarnação do mal do que uma mulher, Lady Macbeth, os efeitos do “contra-natural” se fazem presente em sua humana natureza. No Ato III, cena 2, desabafa aquela foi a mão que empunhou a mão do assassino:

Nada ganhamos, não, mas ao contrário, tudo perdemos quando o que queríamos, obtemos sem nenhum contentamento: mais vale a ser a vítima destruída do que, por a destruir, destruir com ela o gosto de viver.


Nem a um nem a outro, porém, o gosto amargo do crime é o suficiente para converte-los. “O que está feito, está feito”, desfere Lady Macbeth depois de seu lamento. E Macbeth, mesmo corroído pela tristeza, faze-lhe coro, dizendo: “As coisas começadas no mal, no mal se querem acabadas.” (Ato III, cena 2). A tirania do mal, uma vez consentida se instaura, e ainda que a consciência grite e se revolte, a vontade se vê fraca, incapaz e vencida, restando-lhe apenas o reconhecimento da derrota: “Mas fartei-me de horrores” – diz Macbeth na última cena, do último ato – “o terror, já acostumado com os meus pensamentos homicidas, não me surpreende mais.” A paixão tornou-se vício e a razão e a vontade estão à sua mercê.

Neste contexto, o nobre e ambicioso homem que se tornou senhor de um reino vê-se, paradoxalmente, escravo de sua própria ambição, de suas próprias paixões. Percebendo-se como um simples títere nas mãos do destino, aquele que almejava o mais pleno e livre senhorio, depois de cumprir a sua sina, conforme a previsão e a intenção das parcas, deseja apenas a morte; única e desesperada maneira de talvez reencontrar a liberdade:

Breve candeia, apaga-te! (grita Macbeth numa das passagens mais célebres da literatura universal) Que a vida é uma sombra ambulante: um pobre ator que gesticula em cena uma hora ou duas, depois não se ouve mais; um conto cheio de bulha e fúria, dito por um louco, significando nada. (Ato V, cena 5)


Macbeth, peça de Willian Shakespeare em cinco atos pode certamente ser lida como o drama das palavras e das paixões; de como podemos fazer coisas com as palavras e, principalmente, de como as palavras podem fazer coisas conosco. Shakespeare mostra aqui a intrincada economia que existe entre as palavras e as paixões, revelando a “matéria” de que somos feitos e o “modo” como operamos. Entre logos e pathos, entre palavra e paixão, somos e nos movemos, para o Bem ou para o Mal. Cabe pois, à inteligência, à “inteligência das palavras” como escrevia Pascal (Pensamentos, 500), discernir e decidir se, efetivamente, é tudo igual.


Referências Bibliográficas:


SHAKESPEARE, Willian. Macbeth. Tradução de Manuel Bandeira. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996.


LARROSA BONDÍA, Jorge. “Notas sobre a experiência e o saber de experiência” in Revista Brasileira de Educação. No 19, Jan/Fev/Mar/Abr 2002, pp. 20-28.


PASCAL, Blaise. Pensamentos. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo, Abril Cultural, 1973. Col. “Os Pensadores” Vol. XVI.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O que é o Laboratório de Humanidades: sua história, seu “funcionamento” e sua finalidade

Dante Marcello C. Gallian
Coordenador do LabHum

Há pouco mais de cinco anos, iniciamos com um pequeno grupo de alunos do curso médico da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, uma atividade extra-curricular cujo objetivo era ler e discutir textos de história e filosofia. Na verdade, tal iniciativa partiu dos próprios alunos que, ao encerrarem a disciplina eletiva de História da Medicina, toda ela estruturada a partir da leitura e discussão de textos clássicos do tema – entre Hipócrates, Galeno, Paracelso, Harvey – exigiram um espaço para continuarem esta experiência para além dos limites curriculares. Alegavam para tanto não só a carência de leituras como estas em seu currículo, extremamente técnico, como a percepção do efeito formativo e “quase terapêutico” de uma experiência no mínimo inusitada no contexto universitário. Foi assim que nasceu o Laboratório de Humanidades (LabHum) do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde (CeHFi) da Unifesp.

Com o tempo, o grupo foi crescendo e a sua dinâmica amadurecendo. De textos clássicos da medicina passamos a clássicos da filosofia até chegarmos aos clássicos da literatura. A experiência da leitura, discussão e compartilhamento de sentimentos, impressões e idéias suscitadas pelas obras literárias entre o nosso público – formado agora não apenas por estudantes de medicina, mas também por graduandos de outros cursos da área da saúde, de pós-graduandos e até por docentes e funcionários da Unifesp – mostrou, de forma patente, o quanto as humanidades podem ser um efetivo meio de humanização.

Trabalhando com um grupo cada vez mais heterogêneo em termos de idades e interesses, ainda que identificado com o campo das ciências da saúde, logo percebemos que a dinâmica deveria girar em torno do compartilhamento de experiências. Não há, portanto, uma preocupação, por parte da coordenação do Laboratório, quanto a abordagens acadêmicas características da crítica literária ou das ciências humanas em geral. A cada início de ciclo, quando se começa a discutir uma obra que todos já tiveram a oportunidade de ler, os coordenadores convidam a cada um dos participantes do grupo a fazerem a sua história de leitura, ou seja, falar sobre as emoções, sentimentos, afetos, impressões que a leitura da obra suscitou. Posteriormente suscita-se também o levantamento do conjunto de idéias mais representativas que serão, ao longo do ciclo de discussão – que em geral duram de 5 a 6 encontros e que se realizam uma vez por semana – retomadas e debatidas.

Explorar e aprofundar a experiência afetiva que se produz ao nos depararmos com uma obra literária, é o objetivo primevo do Laboratório de Humanidades, pois sabemos que sem o envolvimento integral da pessoa, enquanto ser dotado de sentimento, inteligência e vontade, não pode haver uma efetiva experiência de humanização. Por isso, antes de adentrarmos em discussões filosóficas, sociológicas ou históricas mais profundas – que não apenas são desejáveis, mas inevitáveis – incentiva-se, antes de tudo, a manifestação e compartilhamento das sensações, das emoções. Tal dinâmica não apenas amplia a própria experiência da leitura individual do sujeito, como abre novas possibilidades de leitura para os outros que o escutam. Começa a experiência da “ampliação da esfera do ser”, como bem coloca Teixeira Coelho em seu ensaio sobre “A Cultura como Experiência”.

A abertura para a dimensão emocional e afetiva da experiência humanístico-literária apresenta-se, portanto, como convite e incentivador para um mergulho mais profundo na obra proposta. Logo nos primeiros dois encontros de cada ciclo, uma série de temas já começam a ser levantados e discutidos, possibilitando o desenvolvimento de análises intelectualmente mais complexas, de viés mais cultural, histórico, filosófico, científico. Sente-se aí a participação dos conteúdos mais específicos de formação e experiência profissional e mesmo de vida. Psicólogos, médicos, cientistas, historiadores, filósofos, vão agregando seus conhecimentos e vivências à discussão, sem a pretensão de formular teses ou respostas fechadas para as questões levantas, mas, sem dúvida, compartilhando saberes e análises, enriquecendo mutuamente as visões de mundo e de si mesmo.

Por fim, percebe-se o impacto de toda esta experiência humanística quando, após um certo tempo de participação no Laboratório, começa a se verificar como esta “ampliação da esfera do ser” passa a interferir na prática profissional e na vida como um todo, realidade aferida por não poucos colaboradores desta atividade. O processo, afetivo e intelectivo, detonado pela experiência da leitura e desenvolvido pela dinâmica do compartilhamento e discussão coletiva, completa-se na esfera volitiva, desencadeando mudanças de visão e atitudes; mudanças estas próprias de um movimento de “ampliação”, enfim de humanização.


Muitos são os testemunhos, ainda colhidos informalmente, nas próprias reuniões do Laboratório ou em conversa pessoal com os coordenadores, que atestam esta verdadeira experiência de humanização que advém da participação contínua nas dinâmicas laboratoriais. Uma experiência que toca, amplia e faz mudar a própria perspectiva existencial; uma experiência tão própria do humano, mas tão desvalorizada e esquecida no contexto atual.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Literatura aprimora formação de médicos

O LabHum na mídia

Em 25/10/2009 nosso laboratório foi notícia no Estadão e no Jornal da Tarde (clique no nome para ver o PDF). O texto é de Alexandre Gonçalves e as fotos do JOSÉ LUIS DA CONCEIÇÃO/AE. Abaixo coloquei o texto publicado site Abril.com em 26/10 (http://www.abril.com.br/noticias/ciencia-saude/literatura-aprimora-formacao-medicos-579293.shtml):

Literatura aprimora formação de médicos

Agência Estado

São Paulo - Como se posicionar diante da dor? O que é o arrependimento? Questões assim reúnem um grupo de 30 profissionais de saúde todas as sextas-feiras na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Uma obra de literatura universal, lida previamente por todos os alunos, dá a pauta dos diálogos. Médicos, universitários, pós-graduandos, psicólogos, fonoaudiólogos e até funcionários administrativos investigam sentimentos, projetos e reflexões dos personagens.

Os participantes organizam uma roda e todos podem falar. O encontro já recebeu um nome: laboratório de humanidades. “As experiências realizadas aqui envolvem a afetividade e a sensibilidade dos participantes”, afirma Dante Marcello Claramonte Gallian, diretor do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde da Unifesp e principal responsável pelo laboratório.

“É uma experiência de encontro com a força humanizadora da literatura”, diz o historiador Rafael Ruiz Gonzalez, um dos idealizadores do encontro. Livros tão diferentes como O Senhor dos Anéis, Primeiras Estórias, O Apanhador no Campo de Centeio e Odisseia já instigaram discussões no grupo.

A dermatologista Enilde Borges Costa acredita que a obediência a um conjunto de “regrinhas” não garante o cuidado integral de um paciente. “É preciso conquistar um olhar humanizado, que se torne um traço da personalidade do médico em todos os momentos, também fora do hospital”, afirma Enilde. “Não é simples, mas o laboratório me ajuda a conquistar esse olhar”, completa. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Alice no País das Maravilhas – e nós no país dos absurdos

Escrito por Yuri Bittar, monitor do LabHum, com reflexões de todo o Laboratório de Humanidades

Lendo “Alice no País das Maravilhas” percebi que Lewis Caroll não falava de um lugar imaginário, mas na verdade se referia á sociedade em que vivia. Recorrendo á alegorias ele foi a fundo na dificuldade que as pessoas parecem ter em entender umas ás outras.

No Laboratório de Humanidades lemos recentemente este clássico da literatura infantil e também universal, intitulado “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Caroll. O título original é “Alice's Adventures in Wonderland” ou "Alice in Wonderland". Foi escrito na Inglaterra em 1865. Para mais detalhes sobre o livro consulte a Wikipédia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Alice_no_pa%C3%ADs_das_maravilhas

As reflexões que faço aqui são fruto da minha leitura e também das discussões no Laboratório de Humanidades, portanto, de certa forma, este é um texto coletivo e agradeço aos colegas do LabHum.

Numa alucinante viagem, por lugares estranhos e na companhia de criatura impensáveis, Alice tem que resolver diversos problemas, sozinha , e para voltar para casa, buscar a saída dessa espécie de labirinto aparentemente insano que é o País das Maravilhas.

Mas, se observarmos com cuidado, vamos perceber que o País das Maravilhas não é muito diferente do mundo real. Tirando o fato dos seres de lá serem cartaz e animais falantes, ao analisarmos seus atos, percebemos que são como os atos ditos normais das pessoas até hoje, mesmo aqui do outro lado do Atlântico e tantos anos depois.

Pessoas levemente insanas, que agem de forma um tanto sem sentido, se agridem, se tratam mal, participam de jogos sem objetivos, vagam sem rumo e fazem ameaças que geralmente não cumprem. Assim também não somos nós? Infelizmente parece que sim. E o Gato então? Ele aparece e desaparece, faz o que bem entende e não pode ser capturado. Apesar de dizer que todos são loucos, inclusive ele mesmo, na verdade o bichano parece ser o único sensato, além de Alice. Ele é o único que parece entender o que está acontecendo plenamente, além de ser praticamente onipresente e interferir nos acontecimentos sem ser afetado pelos outros. Ou seja, o Gato que Rí, ou Gato de Cheshire, simplesmente parece representar o próprio Lewis Caroll. E quantas vezes não nos sentimos mesmo os únicos sensatos em um mar de loucos? Outras vezes pode ser até o contrário, e aí dizemos que todos são loucos.

É um país de maravilhas este que Alice visita? Ou apenas um país normal? Bom, uma coisa que é diferente, para Alice, é que ela está só. Não há adultos responsáveis para lhe dizer o que fazer, como ela estava acostumada. Ela tem que resolver tudo sozinha. No início ela tenta seguir a lógica passada por seus pais, como ler o rótulo antes de beber de um frasco. Mas logo ela vai formando uma maneira própria de agir, se adequando ao mundo em que ela está.

Em certos momentos ela se cansa da loucura e incoerência das pessoas daquele lugar. Acontece que normalmente uma criança não tem que se envolver nas loucuras dos adultos, nos problemas e conflitos, permanecendo protegida. Será mesmo? E por aqui? Quantas crianças tem que se virar sozinhas, sejam elas abandonadas ou apenas mau cuidadas por pais relapsos? Elas tem que trabalhar, pedir, e acabam roubando e se drogando. Enfrentam, enfim, as loucuras da cidade e a confusão e violência dos adultos, tendo ou não habilidade para aguentar esse fardo, assim como Alice. Mas nestes casos não se trata de um sonho e o final normalmente não é feliz.

Alice se depara com “pessoas” que agem de forma estranha. Ela não entende o que eles querem. Por que o Coelho tem tanta pressa? E o Chapeleiro e a Lebre, o que fazem afinal? E qual é o objetivo do jogo de críquete com a Rainha? E como podem jogar de forma tão confusa? E o julgamento então, que sentido tem?

Mas se pensarmos em nosso mundo, que eu chamaria de “País dos Absurdos”, veremos algo muito diferente disso? Quantas notícias inacreditáveis vemos diariamente na TV. E pessoas agindo de forma estranha e incompreensível, que vemos constantemente pela cidade? Outro dia desses me deparei com uma estranha senhora, que apelidei cá para mim de “louca das vassouras”. Já outras vezes me deparei com esta estranha figura, que anda de ônibus carregando sempre uma ou mais vassouras, ás vezes só o cabo, andando sem parar, de lá para cá, no ponto de ônibus, dando um chega para lá em quem se colocar no seu caminho. Depois, quando chega o ônibus ela tem que ser a primeira a entrar, ocupa dois assentos e fica resmungando todo o caminho.

Lewis Caroll realmente escreveu um livro profundo, que permite uma série de reflexões, mesmo após um século e meio. Ele fala da dificuldade das pessoas em se entender mutuamente, e isso é atemporal e acontece em todos os lugares. Nos faz pensar realmente, e isso é muita coisa.

Yuri Bittar
Designer, fotógrafo e historiador
Atualmente ministra o curso A fotografia e a Cultura Visual
Site pessoal: www.yuribittar.com

Memórias Póstumas de Brás Cubas: Só um morto pode falar honestamente ?

Escrito por Yuri Bittar, monitor do LabHum

Reflexões sobre Memórias Póstumas de Brás Cubas - Só um morto pode falar honestamente ?

Estou lendo este clássico da literatura brasileira, que incrívelmente ainda não tinha lido. E agora entendo porque de sua importância. Ainda não o terminei, mas me parece haver uma importante reflexão sobre as amarras que nos impedem de ser honestos, até com nós mesmo.

Esse é o livro da vez no Laboratório de Humanidades (UNIFESP). Conforme eu for lendo e participando das discussões no LabHum, vou postando aqui minhas (e do grupo) reflexões sobre o livro.

Uma outra frase surgiu no laboratório; "só um morto pode entender a vida?" Brás Cubas fala com total sinceridade sobre sua vida. Confessa coisas que dificilmente alguém falaria. O morto, além de poder falar a verdade pois nada teme, ainda tem a visão de fora necessária para poder compreender a própria vida.

Como Dostoievski , Machado de Assis faz um exercício para simular a honestidade. O Idiota é sincero assim como Brás Cubas. Eles rompem com o comum (será tão incomum ser honesto?). Brás Cubas não se limita ao “politicamente correto”. Num momento ele não se conforma de uma bela moça ser coxa. “se bela por que coxa, se coxa por que bela?” Como disse o Prof. Rafael, ele não usa a “mentira estabelecida” ao falar o que realmente pensa.

Brás Cubas nos coloca diante do vortex da vida. Da questão primordial do sentido da vida, de por que somos movidos, de como justificamos nossa existência. Se a vida é um circulo ou uma expiral, uma realidade sem saída ou um vortex incontrolável. Afinal, por que se importar com os outros ? A consciência é apenas o medo de pessoas medíocres ? Ele propõe também a idéia de decidir não ter filhos, e confessa ter tido uma vida sem grandes motivações.

Machado escreve com enorme leveza e toques de humor, mas fala de questões delicadas e profundas, e deixa abertas feridas sociais, expõe os dogmas morais e os questiona.

Essa leitura tem provocado acaloradas e profundas discussões no grupo. Creio que desde que participo, há mais de um ano, esse foi o livro que mais nos tocou.

Link para o livro no Domínio Público: www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1923

Link para áudio book: http://www.bibvirt.futuro.usp.br/content/view/full/1947

Yuri Bittar
Designer, fotógrafo e Historiador
www.yuribittar.com

Livros já lidos no LabHum

Livros lidos:

2011 – 1º semestre
Alice Através do Espelho e O Que Ela Encontrou Por Lá, de Lewis Carroll (próximo)
A Divina Comédia. Livro II, “Purgatório”, de Dante ALIGHIERI
A Divina Comédia. Livro I, “Inferno”, de Dante ALIGHIERI

2010 – 2º semestre
• O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde
• A Odisséia, de Homero

2010 – 1º semestre
• Os Demônios, de Dostoiévski
• Dom Casmurro, de Machado de Assis

2009 – 2º semestre
• Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector
• Macbeth, de William Shakespeare
• O Senhor dos Anéis. de JRR Tolkien

2009 – 1º semestre
• O Coração Disparado, de Adélia Prado
• Zorba o Grego, de Nikos Kazantzakis.
• Quincas Borba, de Machado de Assis
• A Metamorfose, de Franz Kafka

2008 – 2º semestre
• Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa
• A Morte de Ivan Ilich, de Tolstói
• Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski

2008 – 1º semestre
• A Morte de Ivan Ilich, de Tolstói
• Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis
• Crime e Castigo, de Dostoiévski

2007 – 2º semestre
• Franny e Zooey - Família Glass, de de J.D. SALINGER
• Alice no País das Maravilhas, de Lewis Caroll
• Frankenstein, de Mary Sheley

2007 – 1º semestre
• O Idiota, de Dostoiévski
• Vá aonde seu coração mandar, de Susanna Tamaro
• O Sentido da Vida, de Mitch Albom

2006 - 2º semestre
• Anna Karenina, de Tolstoi
• Anima Mundi ou A Alma do Mundo, Suzana Tamaro
• A Tempestade" de Shakespeare

2006 - 1º semestre
• O Apanhador no Campo de Centeio
• História sem fim
• Dom Quixote
• Perto do coração selvagem - Clarice Lispector
• Milan Kundera, a insustentável leveza do ser

Frankenstein de Mary Sheley e nossos frankensteinzinhos

Escrito por Yuri Bittar, monitor do LabHum

No Laboratório de Humanidades esta semana terminamos de ler Frankenstein, de Mary Sheley, escrito em 1817. Vou relatar aqui minha opinião sobe o livro, mas que é totalmente influenciada pelos colegas do laboratório e a eles credito a co-autoria deste artigo. A primeira coisa que precisamos esclarecer é que Frankenstein é o nome do cientista “maluco” Dr. Victor Frankenstein, o monstro não tem nome, apesar que podíamos chamá-lo de “Junior”. Aliás, a criatura do Dr. Victor, além de não ter um nome, não tem praticamente nada. Nasce já adulto, porém sem nenhum tipo de amparo, jogado á todas as dores do mundo, sentindo frio sem saber o que era o frio, que podia se aquecer, com fome sem saber que existia alimento, com sede sem saber o que era água e só, sem saber que podia procurar outras pessoas. Ou melhor, não podia, pois ele também era desprovido da aparência humana. O que ele tinha era uma aparência insuportável e ninguém podia olhar para ele sem sentir horror.

Parece que a questão primordial que o livro suscita é; quem é a vítima? Dr. Victor Frankenstein deu vida á criatura, e em seguida a abandonou á própria sorte. Ou o monstro, que matou pessoas inocentes por vingança?

Como alguém abandonado e odiado ao nascer poderia respeitar a vida dos que o desprezaram? E os nossos milhares frankensteinzinhos de rua, as milhares de crianças de rua, que apesar de não terem uma força descomunal ou uma aparência horrenda nos colocam medo? Segundo as contas mais otimistas aproximadamente 1800 crianças vivem nas ruas apenas da cidade de São Paulo. Podem ser muito mais, alguns falam em 4 mil.

O ódio. Dr. Victor odiou sua criatura ao vê-la. A criatura odiou o mundo, que a tratou da pior forma. O mundo odiou a criatura, talvez o maior monstro do cinema, dos desenhos, etc... É um livro sobre o ódio, ou sobre os perigos da ciência, a prepotência humana ou o desprezo? Tudo isso penso eu. Por isso é um livro muito atual, próximo de completar 200 anos. Seria porque o ser humano pouco mudou e continua insistindo nos mesmos erros ?

Mas os clássicos gregos também mantém a atualidade, depois de milênios. Mary Sheley escreveu um livro que se tornou referência, trazendo de volta o mito de Prometeu, que foi punido por Zeus por dar o fogo ao Homem, e podemos associá-lo também a Lucífer, decaído por não aceitar as ordens de Deus, Ícaro, que, não bastando voar, quis voar cada vez mais alto, até que o sol derreteu suas asas e ele despencou para a morte, ou ainda Adão e Eva, que descumpriram a ordem de Deus, de não comer da árvore do conhecimento e foram expulsos do paraíso, assim como Dr. Victor, que não satisfeito com a vida perfeita que tinha, criou o mostro que a destruiu, enfim, uma trama que explora os limites da atitude humana e as conseqüências das ações desmedidas, que não respeitam os limites humanos ou divinos. Um livro ótimo, que a colocou para sempre entre os grandes escritores da humanidade.

Mary Sheley não sabia, mas sua obra também pode ser comparada à criação da bomba atômica. O sonho de que a ciência traria infinitos benefícios para toda a população do mundo, acabou diante da constatação do horror que ela podia causar.

Leia mais sobre esse livro: http://pt.wikipedia.org/wiki/Frankenstein

Yuri Bittar
Designer, fotógrafo e Historiador
www.yuribittar.com

O Sentido da Vida, de Mitch Albom

Escrito por Yuri Bittar

Só podemos dar sentido á nossas vidas dedicando-nos a nossos semelhantes e a comunidade, e nos empenhando na criação de alguma coisa que tenha alcance e sentido. (Morris Schwartz)

No LabHum estamos terminando de ler o livro ``A ultima grande lição - O Sentido da Vida” de Mitch Albom. O mais engraçado é que este livro é um best-seler norte-americano, e por isso enfrentou muito preconceito do grupo, assim como aconteceu com o próprio Prof. Dante, que teve o livro indicado por um amigo, mas demorou muito tempo para lê-lo e indicá-lo para nos. E depois de tanta resistência, o livro se mostrou realmente muito bom, agradando muito uns, sendo desaprovado por outros, mas não passou indiferente para ninguém.



Para mim ele marcou especialmente. Não apenas pelo seu conteúdo, mas principalmente pelo que ele resgatou dentro de mim. Primeiro a vontade de ser professor que estava meio deixada de lado, e já estava voltando, mas com essa leitura ganhou força. O livro me reforçou também o prazer em ser aluno. Também me lembrou de pessoas queridas, professores de tanto tempo atrás ou atuais, ou ainda pessoas que foram como professores para mim, me trazendo lições de vida, conscientemente ou não.



O livro também me fez pensar se estou no caminho certo, se estou encontrando felicidade e paz, se estou me desapegando das coisas e me apegando mais as pessoas. Se estou fazendo coisas das quais não me arrependerei quando chegar ao fim da vida, se estou fazendo algo de que me orgulho realmente e se estou ajudando as pessoas. Me fez pensar também se estou dando valor aos que me amam e se estou demonstrando que também os amo, por que eu os amo mesmo, mas será que eles sabem ? Eles precisam saber para poderem ser felizes e saberem que seu amor e retribuído.



Algo que tornou a leitura do livro ainda mais forte foi a dor. Sim, a dor, pois li o livro com dores. Terminei de ler o livro em plena crise, doente, com dor. Acompanhando a doença e morte de Morrie, a minha dor, embora insignificante diante da de Morrie, ajudou a dar realismo a leitura. Sofri. Sofri por Morrie, por nos todos e pro mim mesmo. No mesmo dia que terminei de ler o livro, descobri que tenho uma doença gástrica. Até um dia antes eu podia comer qualquer coisa, em qualquer quantidade, e nada me fazia mal. Mas agora, como Morrie, não posso mais comer tudo que quero. Li doente sobre a bela morte de Morrie.



``O Sentido da Vida`` nos faz entender quais são as questões importantes na vida, e como lidar com elas. Nas livrarias ele esta na seção de auto-ajuda, ou as vezes em psicologia. Mas vejo ele mais como literatura. O que lemos e sobre a vida de dois homens, que se reencontram num momento especial, que e o fim da vida de um, e poderá ser um recomeço para o outro.



Leia esse livro, nem que seja para não gostar, mas pelo menos é uma oportunidade de parar e pensar. Pensar no que há de mais importante na nossa vida.

O Idiota, de Dostoievsky

Reflexão de Yuri Bittar (monitor)

Amigos leitores. Participo de um grupo genial chamado “Laboratório de Humanidades” na UNIFESP. Este é um grupo que se reúne semanalmente para discutir a leitura de livros. O incrível é esse trabalho ser realizado em um campus tipicamente da área da saúde, e termos um grupo muito heterogêneo, que vai desde historiadores até médicos. Passando por docentes, profissionais e alunos. Atualmente estamos discutindo O Idiota, de Dostoiévski, e estas são as minhas impressões gerais dos conceitos contidos no livro, “chupando” um pouco do que os outros participantes observaram, portanto este não é um texto só meu, e sim uma construção coletiva e que pretendo agora compartilhar com mais pessoas.

A primeira coisa que me chamou a atenção foi o fato do Príncipe ser o único que não está “maquinando” o tempo todo. Ele parece viver momento, ou no máximo pensar apenas nos próximos acontecimentos.

Ao final do livro eu já vejo como problema central do livro a comunicação, ou seja, como se fazer entender por pessoas que não podem e não querem ver as coisas como você ? Esta falha na comunicação entre as pessoas parece ser decorrente de uma série de fatores, mais alguns no caso do nosso herói, mas destaco um, a falta de paciência. Aí parece estar uma questão fundamental do livro, pois o Príncipe parece ter uma paciência sem fim com todos, e poucos tem a mesma consideração por ele. Será porque o Príncipe tem um amor ilimitado por todos ? Afinal os poucos que tem paciência com ele são exatamente os que o ama ?

Eu me pergunto se a intenção do autor não foi exatamente essa, colocar em discussão a superficialidade das relações sociais, e o choque causado por elemento que vê os outros mais profundamente.

Quero agora colocar mais algumas inquietações geradas pelo livro, em mim e nos outros participantes do laboratório:

· Cogitamos que o Príncipe parece viver uma outra realidade, mas o que é realidade, e será que na verdade ele não vê a realidade muito melhor que os outros, por ser menos preso a preconceitos e visões fáceis ?

· Consequentemente devemos nos perguntar, há uma falha na comunicação ? Eu particularmente vejo que ele está em outro tempo, em uma lógica levemente diferente, e, além dele conhecer os códigos da sociedade, tem também uma linguagem própria ? Como ele poderia expressar verbalmente idéias que estão além do alcance dos outros, de uma maneira inteligível.

· De certa forma o Príncipe não está muito preocupado em ser entendido, mas sim em entender.

· Ele definitivamente vive em uma dimensão de tempo diferente, ele parece dispor de bem mais tempo, pois dedica muita atenção à todos.

· Outro questionamento que fatalmente surge é; porque esse final, porque o Príncipe regride em sua doença e se retira da consciência, porque ele é, digamos, derrotado ? Bom, creio que seria o mesmo que perguntarmos qual é a moral da história ? Akira Kurosawa, que filmou O Idiota em 1951, disse “...é o escritor (...) que escreve com mais honestidade sobre a existência humana. (...) não há nenhum outro autor (...) que seja tão bom, tão delicado”. Que triste, se Dostoiévskientende tão bem o humano, e a figura pura do Príncipe tem um final tão trágico, o que será de nós, qual a esperança que resta ?

· Mas não vejo assim dessa maneira tão trágica, acho que o autor quis questionar até que ponto uma pessoa pode suportar amar tão grandemente, acho que essa é a resposta.

· Por fim creio que a maioria das pessoas se apaixona pelo Príncipe, mas poucos são como ele, ainda mais no nosso tempo.

· Talvez você me pergunte, mas que conclusões são essas que eu chego, mais perguntas que respostas ? Hora, devemos desconfiar dos livros que nos trazem muitas repostas, e confiar nos que provocam questionamentos. Acho que O Idiota é ótimo por nos colocar diante de questões da maior relevância, fazendo isso de maneira totalmente crítica. Acho que alguns leitores desse livro podem até se envergonhar de si mesmos, ao se identificar com outra personagem que não o Príncipe.