terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Próxima leitura: Os demônios

Amigos Labhunianos e pessoas que acompanham este blog!

O próximo livro a ser discutido em nosso laboratório, e que será o primeiro de 2010, será Os demônios, de Fiódor Dostoiévski. A edição recomendada é a da Editora 34:

Os demônios
Fiódor Dostoiévski
Tradução de Paulo Bezerra
Editora 34

O próximo ciclo do Laboratório de Humanidades (ano V – Primeiro Semestre) começará em 26/02/2010.

A partir da leitura, reflexão e discussão de obras clássicas, o Laboratório constitui-se em um espaço privilegiado de troca de impressões, idéias e experiências motivadas pela leitura/fruição dos grandes clássicos da literatura. É um espaço aberto aos alunos de graduação, pós-graduação, docentes e funcionários da UNIFESP, assim como para estudantes de outras universidades. Os encontros ocorrem às sextas-feiras das 12 às 13:30 horas na Rua Pedro de Toledo, 650 - Anfiteatro 1 da Prograd.

Coordenação:
Prof. Dante Marcello Claramonte Gallian
Prof. Rafael Ruiz
Monitor:
Yuri Bittar

Maiores informações e inscrições no CeHFi: Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde da UNIFESP, rua Botucatu 720, Edif. Leitão da Cunha/ Museu Histórico da EPM. Fone/Fax: 5576-4258 ou 5549-7584 ou com o monitor Yuri (yuribittar@gmail.com)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

“Dá, pois, a teu servo um coração que escuta...”:

O discernimento como fundamento da santidade (reflexões a partir de literatura profana e sagrada).

Dante Marcello Claramonte Gallian
Coordenador do LabHum


Uma Explicação

Este texto é resultado de uma apresentação feita no II Seminário do Núcleo de Mística e Santidade (NEMES) da PUC-SP, realizado no dia 27 de novembro de 2009, cujo tema foi: “Seria a Santidade Insuportável?” Ela estava inserida na sessão especial de abertura do seminário, “Santidade na Literatura e na História”. Resolvi publicá-la aqui no Blog do LabHum, em forma de artigo, pois deriva diretamente de leituras e reflexões que ocorreram em encontros do Laboratório há alguns anos atrás. Vá Aonde seu Coração Mandar, de Suzanna Tamaro, foi um dos primeiros livros que lemos e discutimos e, como se verá, suscitou e provocou muitas outras novas reflexões e iniciativas que transcenderam os limites do LabHum. Mesmo tendo recebido a sinalização de que este artigo será publicado num número futuro da revista Agnes do NEMES, quis disponibilizá-lo aqui, em primeira mão, como forma de promover nosso Blog e também de atestar o poder seminal do Laboratório de Humanidades, do qual, mais do que coordenador, sou um grande beneficiado.


Da “Pequena” à “Grande” Literatura

Não é de todo incomum que, às vezes, uma obra literária de qualidade mediana, ou melhor, que esteja um tanto longe de ser um clássico, traga alguma imagem ou idéia de grande poder, alguma grande questão. Assim, a despeito da sua fragilidade enquanto conjunto, tal obra, por força dessas imagens ou idéias, se projeta e reivindica para si uma certa atenção e longevidade que a aproxima, até certo ponto, da condição de um clássico. É o que acontece também com algumas canções, fracas no todo, mas cujo refrão é forte o suficiente para garantir um lugar permanente na memória coletiva.

Tal é o caso do pequeno livro da italiana Susanna Tamaro, Vá Aonde seu Coração Mandar (1995). Best seller no início da década de 1990, considerado por muitos como obra de auto-ajuda e celebrado por outros como revelação de uma nova literatura, alternativa à nouvelle vague dos anos 80, marcada pela reverberação dos valores, ou melhor, dos contra-valores da geração contra-cultural dos anos 60.

Independentemente de uma certa fragilidade argumentativa, da superficialidade na utilização do jargão filosófico e da pobreza monocórdica das imagens, símbolos e alegorias utilizados, a narrativa de Tamaro demonstra-se suficientemente forte para evocar questões antropológicas sérias e suscitar reflexões e discussões fecundas e profundas. Pelo menos esta tem sido a minha experiência nos últimos anos, pois há não pouco tempo venho me utilizando – com sucesso – deste instigante livrinho em meus cursos de graduação e pós-graduação na universidade, como provocador de discussões sobre as questões essenciais da existência humana, num contexto de problematizar o tema da humanização através das humanidades.

Além disso, devo confessar também que foi graças a uma discussão suscitada pela leitura deste livro no Laboratório de Humanidades que comecei a delinear uma das linhas de pesquisa mais importantes para mim hoje, geradora de dois projetos de pesquisa a partir do tema “coração”: um sobre a história da querela entre o cárdio e o cerebrocentrismo na época moderna e outro sobre experiências e crenças sobre o coração a partir de testemunhos de transplantados cardíacos.

E eis-me aqui novamente tomando-o como ponto de partida para uma reflexão sobre o discernimento como fundamento da santidade, apoiado na imagem do coração como centro da vida espiritual. Reflexão que remete, inevitavelmente, à grande literatura das Sagradas Escrituras e dos grandes místicos e mestres da espiritualidade. Ou seja, verifica-se aqui um caso clássico de como uma obra “menor” pode se transformar em uma porta de acesso aos grandes clássicos.


Ouvir a Voz do Coração

Vá Aonde seu Coração Mandar é um romance epistolar. Compõe-se de cartas que uma avó escreve para sua neta, filha única de sua filha única que morreu num acidente quando aquela ainda era pequena. A neta, ao chegar à juventude, movida pela rebeldia e pelo espírito de aventura, resolve partir deixando a velha avó, que a criara, sozinha numa velha casa nos arredores de Trieste, nordeste da Itália.

Procurando driblar a solidão e ao mesmo tempo aquietar a alma, a avó, Olga, começa a escrever cartas dirigidas à neta que, no entanto, nunca são enviadas. Começando por descrever nelas seu cotidiano, sua saúde, o estado da casa e do cãozinho que a neta havia deixado, aos poucos as cartas vão se tornando um depositório de reflexões e confissões existenciais, transformando-se numa espécie de autobiografia e de história da família, onde Olga vai procurar resgatar e se reconciliar com o passado, buscando também encontrar uma explicação para o impasse criado entre a neta e ela.

Passando por alto os detalhes e a dinâmica da trama, gostaria de ir direto ao cerne da questão, ao tema principal do romance que é, precisamente, o convite a ouvir a voz do coração. Para Olga, reverberando a sabedoria antiga, “o coração é o centro do espírito”, aquilo que define o que a pessoa realmente é, sua verdadeira personalidade. Sabe, entretanto, que esta forma de entender o coração e a personalidade humana é algo em desacordo com o seu tempo, com a mentalidade contemporânea. Pondera a personagem de Tamaro em uma de suas cartas:

A esta altura dos acontecimentos, o coração já faz pensar em algo ingênuo e barato. Quando eu era jovem, ainda era possível mencioná-lo sem embaraço; agora, porém é um termo que ninguém mais usa. As raras vezes em que é mencionado só o é para que seja lembrada alguma das suas disfunções: já não é o coração em sua totalidade, e sim uma isquemia coronariana, uma ligeira dor atrioventricular; mas dele inteiro, dele como centro da alma humana, já não se fala. (p. 61)


De acordo com Olga, este esvaziamento ou esquecimento do coração enquanto órgão da pessoalidade está profundamente relacionado, no âmbito da história, pela hiper-valorização da mente, fenômeno associado à visão racionalista e racionalizadora da época moderna.

A mente é tão moderna quanto o coração é antigo. Quem liga para o coração – pensa-se então – ainda está perto do mundo animal, do descontrolado, ao passo que quem cuida da razão se aproxima das mais elevadas reflexões. (pp.61-2).


Mas Olga, fundamentada em sua própria experiência de vida, desconfia da validade de tais argumentos e, de maneira desafiadora, questiona:

E se as coisas não fossem assim, se a verdade fosse exatamente o contrário? Se fosse justamente esse excesso de razão o que desnutre a vida? (p. 62).


Para Olga o conteúdo misterioso daquilo que somos, daquilo que devemos ser, emerge justamente do coração. É dele que provém nossa verdadeira personalidade. A sua manifestação e realização, entretanto, não costuma ser compreendida e acolhida pelo mundo, que na sua racionalidade medíocre e padronizadora, vai encarregando-se de domesticá-la, caracterizando-a. Como conta Olga, numa de suas cartas mais reveladoras e inspiradas, em sua mais tenra infância “respirava e sabia haver uma ordem superior das coisas de que eu fazia parte, junto com todas as demais coisas que via. [E] apesar de ainda não conhecer a música, alguma coisa cantava dentro de mim...” (p. 47)

Vasculhando suas memórias da infância, Olga assim identifica o nascimento e a revelação de sua personalidade: como uma “melodia”, “sem refrão definido”, mas soprando com um “ritmo regular e poderoso perto do meu coração [na verdade poderíamos dizer, dentro, no mais íntimo do seu coração] e este sopro [continua Olga] expandindo-se por todo meu corpo e mente, produzia uma grande luz, uma luz de dupla natureza: a sua própria, de luz, e a da música. Sentia-me feliz por existir, e além desta felicidade para mim nada mais havia.” (idem).

Não deixa de chamar a atenção aqui a semelhança desta descrição com a de outra personagem feminina, também profundamente reflexiva e profunda, Joana, plasmada por Clarice Lispector no romance Perto do Coração Selvagem (1998). Tal como Olga, em tom confessional e intimista, a personagem, talvez de forma superior do ponto de vista literário, evoca a grande experiência, ao mesmo tempo mística e física, difícil em suma, da revelação da personalidade profunda de profundis nomeia Joana – na trama complexa e contraditória da vida. Mas, deixando por enquanto esta tentadora senda de análise – a da comparação entre as obras de Clarice e Suzana Tamaro – voltemos para nossa trilha original.

Olga, mais adiante em sua narrativa, como que justificando e, ao mesmo tempo, procurando atestar a veracidade dos acontecimentos rememorados, interpela a neta: “Talvez você ache um tanto estranho ou excessivo que uma criança possa intuir algo assim.” Porém, ela mesmo responde: “Infelizmente, estamos acostumados a imaginar a infância como um período de cegueira, de falta, e não como uma fase de muita riqueza. E, apesar de tudo, bastaria fitar os olhos de um recém-nascido para percebemos que é isso mesmo.” (idem).

Olga está convencida da realidade de sua experiência, da música que soprava desde o centro do seu coração e invadia todo o seu ser, informando-a, transformando-a, ela mesma em “pura música”. Sabe que não se tratava de uma brincadeira de criança ou tampouco de uma evocação ilusória de uma velha frustrada em busca de um sentimento perdido.

Tão séria foi para Olga esta experiência que ela não passou desapercebida no mundo dos adultos. Assim, conta nossa protagonista, seja em casa, seja na escola, o “espírito do mundo” foi se encarregando de reprimir, enquadrar, chantagear, enfim “educar”a frágil criatura musical que então despontava. Conta ela:

Meu pai e minha mãe não se cansavam de me repreender devido ao meu hábito de cantar. Uma vez, durante o jantar, até levei um bofetão – o meu primeiro bofetão – porque deixara escapar uma pequena ária. “Não se canta na mesa”, trovejou o meu pai. “Não se canta se não se é cantor”, reforçou minha mãe. Eu chorava e repetia entre lágrimas: “Mas sinto a música por dentro”. Qualquer coisa que não estivesse ligada ao mundo concreto da matéria era, para meus pais, absolutamente incompreensível. Como seria então possível eu guardar a minha música? Deveria ter, no mínimo, o destino de um santo. Mas o meu, na verdade, era o destino cruel da normalidade. (pp. 50-1).


Interessante notar como a associação entre música, coração, personalidade e santidade – associação esta que evoca uma antiga e sólida tradição – aparece aqui explicitada. A música, que brota do coração, indica e revela a manifestação de uma personalidade única, original que promete desabrochar em realização humana plena, saudável, santa. O confronto com o mundo, porém– para evocar novamente esta mesma antiga e sólida tradição – irá comprometer o desenvolvimento desta trama, determinando o desvirtuamento do processo de personificação em caracterização. Como explica a própria Olga:

Durante todo o primário, travou-se uma luta feroz entre a vontade de permanecer fiel ao que sentia dentro de mim e o desejo de aderir, embora considerando-o falso, àquilo em que acreditavam os demais. [...] Aos doze, quatorze anos, já possuía uma triste estabilidade. As grandes perguntas metafísicas tinham-se pouco a pouco afastado para dar lugar a novas e inócuas fantasias. [...] Pouco a pouco a música desapareceu, e com ela o sentido da felicidade profunda que me acompanhara nos primeiros anos de vida. [...] Com o passar dos anos, abandonei-me a mim mesma, a parte mais profunda de mim, para tornar-me outra pessoa, aquela em que meus pais esperavam que eu me transformasse. Deixei de lado a minha personalidade para adquirir um caráter (grifo meu). O caráter, como você certamente irá descobrir, é muito mais apreciado no mundo que a personalidade. Mas o caráter e a personalidade, ao contrário do que muitos pensam, não se dão lá tão bem, e na maioria dos casos o primeiro exclui peremptoriamente o segundo. [...] Não pense que foi fácil e natural deixar de lado a personalidade para aparentar um caráter. No fundo de mim, alguma coisa continuava a rebelar-se, uma parte desejava continuar sendo eu mesma, ao passo que a outra, para ser amada, queria adaptar-se às exigências do mundo. Uma batalha e tanto! (pp. 49-51)


De maneira simples, quase singela, as palavras de Olga, personagem de Suzanna Tamaro, nos lançam para o cerne de uma das questões mais essenciais da existência humana: o conflito, a batalha (imagem extremamente forte e evocativa) entre “personalidade” e “caráter”; entre as “exigências do coração” e as “exigências do mundo”. E isso, sem dúvida, nos remete à imagem e ao tema da luta ascética que é o próprio fundamento da idéia de santidade – santidade enquanto realização plena da humanidade, da humano salutis.


Entre o Profano e o Sagrado

É aqui então que a literatura menor funciona como uma “janela” que se abre ou como uma “alavanca” que nos impulsiona em direção ao clássico, à grande literatura; e, de certa forma, onde também, concomitantemente, se dá a passagem do profano para o sagrado. A narrativa de Suzanna Tamaro nos remete por caminhos inusitados à narrativa mística de São Paulo, mais especificamente para sua Carta aos Romanos, onde admoestando os primeiros cristãos da capital do império, escreve:

E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando a vossa mente, a fim de poderdes discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, agradável e perfeito. (Rm 12, 2).



Eis ai, de forma clara, explícita, o tema da luta contra as exigências do mundo. São Paulo convida àqueles que buscam a santidade (o fazer aquilo que é bom, agradável e perfeito) a não se conformarem com o mundo, isto é, não tomar a forma do mundo, o seu caráter. Pois na verdade, o cristão deve antes tomar a forma do Cristo, seu verdadeiro modelo, sua verdadeira fôrma – idéia esta mais tarde desenvolvida por Santo Agostinho (Cf. Comentário da Primeira Epístola de São João, 1989, p. 193). Neste sentido, portanto, o cristão deve transformar-se, renovando a sua mente, desenformando-a da fôrma do mundo e procurando conformá-la com a fôrma de Deus, fôrma esta que, como o próprio S. Paulo irá precisar em inúmeras passagens, encontra-se impressa no coração humano. Desta forma, renovada, livre da conformidade com o mundo, a mente pode exercer a sua verdadeira função que é a de discernir. Discernir, em primeiro lugar, entre a voz do mundo e a voz do coração e, depois, discernir entre as diversas vozes que vem do coração. Sim, pois a voz do coraçãona verdade se apresenta como uma polifoniade vozes às quais é preciso também discernir, a fim de “fazer aquilo que é bom, agradável e perfeito”, já que se é no coração humano que habita o Espírito Santo, é nele também que se encontram os espíritos malignos e toda a maldade que assola o homem – “Com efeito”, ensina Jesus Cristo aos seus discípulos, “é do coração que procedem más intenções, assassínios, adultérios, prostituições, roubos, falsos testemunhos e difamações.” (Mt 15, 19).

A ciência do discernimento que advoga São Paulo, é pois uma ciência de múltiplas dimensões, que apresenta fases ou graus. Num primeiro momento cabe discernir entre o espírito do mundo e o espírito do coração, fonte da verdadeira personalidade, da verdadeira santidade. Tal discernimento é fruto da renovação da mente, que inconformada com os apelos do mundo, volta-se para os apelos do coração. Porém, uma vez voltada para dentro, não apenas a mente, mas também o próprio coração deve tornar-se apto a discernir. Do discernimento da mente passamos ao discernimento do coração, tal como é evocado em outro texto bíblico, desta vez do Antigo Testamento: o Primeiro Livro dos Reis.

No capítulo terceiro deste narra-se que Salomão, filho de Davi, depois de se estabelecer como herdeiro no trono de Israel, vai a Gabaon “para lá oferecer um sacrifício” a Iahweh, pois lá “era o lugar alto mais importante”. Estando em Gabaon, Iahweh aparece-lhe em sonho e diz: “pede-me o que te devo dar”. Salomão, depois de considerar a grande e difícil missão que lhe cabe, qual seja, a de governar e cuidar do povo de Israel, faz o seu pedido a Iahweh: “Dá-me pois a teu servo um coração que escuta” (grifo meu). Ora, “agradou ao Senhor que Salomão tivesse pedido tal coisa”, pois ao invés de poder, honra, glória e riquezas materiais, Salomão pede-lhe aquilo que é o fundamento mesmo da fidelidade, da santidade. E por isso, além de dar-lhe o que pedia, deu-lhe também o que não pedia, aquilo que o Senhor considera apropriado para a sua condição e missão:

“Porque foi este o teu pedido, e já que não pediste para ti vida longa, nem riqueza, nem a vida dos teus inimigos, mas pediste para ti discernimento para ouvir e julgar, vou fazer como pediste: dou-te um coração sábio e inteligente, como ninguém teve antes de ti e ninguém terá depois de ti. E também o que não pediste, eu te dou: riqueza e glória tais, que não haverá entre reis quem te seja semelhante. E se seguires os meus caminhos, guardando os meus estatutos e os meus mandamentos como o fez teu pai Davi, dar-te-ei uma vida longa.” (1 Rs 3, 11-14).


Um coração sábio, inteligente, que sabe (distingue os sabores), escuta, discerne, compreende: eis o fundamento para realizar aquilo que é bom, agradável, perfeito; para viver com sabedoria e santidade. Depois do discernimento da mente, é preciso adquirir o dom do discernimento do coração, para saber distinguir a voz do Espírito da voz da carne; a voz de Deus da voz das paixões e dos espíritos impuros, como mais tarde iria ensinar Diádoro de Focitéia, monge hesicasta do século V, um dos precursores do eremitismo cristão oriental (Cf. DIADOQUE DE PHOCITÉ, 1997).



De volta à literatura profana de Suzanna Tamaro, vamos encontrar Olga já em suas últimas cartas, narrando o seu encontro com “um jesuíta alemão pouco mais velho” que ela. Tal encontro deu-se em função de uma reaproximação da religião depois da morte de seu marido, o qual Olga havia traído na juventude. Percebendo a sua pouca familiaridade e certa indisposição com os rituais religiosos e procedimentos clericais, o padre propôs que conversassem enquanto davam longas caminhadas pelas montanhas vizinhas.

Ao contrário dos demais padres que eu conhecia – escreve Olga – ele ignorava as palavras de condenação ou de consolo, toda a pieguice melosa das mais óbvias mensagens era para ele estranha. Havia uma espécie de dureza nele que, à primeira vista, podia parecer altivez. (p.123)


É através deste padre, entretanto, que Olga irá aprender as verdades mais profundas sobre as realidades e as exigências do coração, assim como, a partir daí, irá perceber a importância de saber discernir.

Em sua opinião, o coração do homem era como a Terra, metade iluminada pelo sol, metade pela na sombra. Nem mesmo os santos tinham luz em toda parte. “Não há como não termos sombras”, dizia, “pelo simples fato de termos um corpo. Somos como as rãs, anfíbios, uma parte de nós vive aqui embaixo, e a outra tende para cima. Viver consiste nisto, ter consciência e saber disso, lutar para que a luz não desapareça vencida pela sombra. Desconfie de que é perfeito”, dizia, “de quem tem as soluções prontinhas no bolso, desconfie de tudo, exceto do que o seu coração lhe disser.” (idem).


Orientada pelos conselhos do jesuíta alemão Olga começa praticar a arte do discernimento, a mesma arte descrita e aconselhada pelos mestres bíblicos do Antigo e Novo Testamentos, na busca por reencontrar o caminho e o destino perdidos lá atrás na infância: o destino de um santo. Num primeiro momento, Olga considera que talvez possa parecer tarde demais, já que ela se encontra agora no fim da vida, porém, o simples fato de se perceber e compreender o porquê dos descaminhos da vida, mesmo que já se tenha percorrido a quase totalidade do trajeto, adquire um significado libertador, com força suficiente para redimirtoda a existência. Compreendendo que todos os seus erros, falhas e também todas as suas frustrações e infelicidades passadas foram conseqüência de uma infidelidade cordial, Olga, instruída agora na ciência do discernimento da mente e do coração, revela em suas cartas para a neta, a sua experiência de renovação que determina uma nova atitude vital: a da escuta atenta do coração. “Talvez você só me possa entender quando for mais velha”, pondera a avó, “quando tiver percorrido aquele misterioso caminho que da intolerância leva à compaixão”. De qualquer forma, entretanto, ainda que toda esta descoberta e experiência tenha ocorrido tão tardiamente em sua vida, sua força é suficiente não apenas para libertá-la do seu passado, como também influenciar, em forma de testemunho, o futuro daqueles a quem ela é transmitida. Arrematando a sua última carta – e o próprio romance – Olga dá o seguinte conselho à sua neta:

E então, quando se abrirem vários caminhos e você não souber qual escolher, não tome um qualquer, tenha paciência e espere. Respire com a confiante profundidade com que respirou no dia em que veio ao mundo, não deixe que coisa alguma a distraia, espere e continue esperando. Fique parada, em silêncio, e ouça seu coração. Quando enfim ele falar, levante-se e vá aonde ele a quiser levar. (p. 136).


Talvez, para alguns, os conselhos de Olga soem um tanto piegas ou patéticos, porém para muitos, sensibilizados pelas experiências frustrantes e desumanizadoras que séculos de racionalismo radical ajudaram a proporcionar, tais palavras podem significar o início de um movimento que, a partir da leitura descompromissada de um best seller, acaba por desembocar na redescoberta inusitada dos grandes clássicos. E nestes, depositários privilegiados das grandes e profundas experiências humanas, vamos encontrar as fontes de uma sabedoria tão esquecida quanto necessária: a sabedoria do discernimento, fundamento da realização plena da personalidade, da saúde, enfim, da santidade.



Referências Bibliográficas


AGOSTINHO, Santo. Comentários da Primeira Epístola de São João. São Paulo, Paulinas, 1989.


BÍBLIA De Jerusalém. Tradução do texto em língua portuguesa direto dos originais hebraico e grego. São Paulo, Paulinas, 1985.


DIADOQUE DE PHOCITÉ. Oeuvres Spirituelles. Trad. e Org. Édouard des Places. Paris, Éditions du Cerf, 1997.


LISPECTOR, Clarice. Perto do Coração Selvagem. Rio de Janeiro, Rocco, 1998.


TAMARO, Suzanna. Vá Aonde Seu Coração Mandar. Trad. Mario Fondelli. Rio de Janeiro, Rocco, 1995.