terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Reflexões sobre o livro O Retrato de Dorian Gray

Por Helena H. V. Tângari
Participante do LabHum

Em todas as sextas que participei, adquiri ou confirmei várias idéias que surgiram nas discussões. Surgiram muito assuntos, como o poder das palavras, sedução, beleza, venda ou perda da alma, solidão, a arte, experimento x experiência, influências, culpa, e diversos outros temas.

No ultimo encontro questionou-se bastante porque Dorian culpava Basílio pelo seu proprio comportamento, e para mim enxergo Dorian como qualquer outro ser humano, a maioria dos indivíduos querem culpar alguém por suas tragédias e momentos em que se perdem o controle, querem achar a causa do que ocorreu, e porque isso acontece?

Isso só acontece quando a ação não é esperada ou desejada pelo meio em que vivemos, pois quando acontece algo comum e esperado, seguramente já tem o autor a se mostrar. Ou seja, quando são coisas do bem temos sempre autores, mas quando são coisas que desagradam o meio, procura-se o culpado. Dorian não é diferente de ninguém. A atitude dele não desagradou somente a sociedade em que ele vivia, desagradou também a ele mesmo, e por isso ele desejou culpar alguém.

Outra questão que foi levantada, e que foi marcante para minha vida, foi o significado de liberdade, para mim ficou que, um ser livre é aquele que não sofre influência de nada, e por esta razão não consigo ver ou achar nenhum ser vivo livre, nem mesmo aquele que está nas florestas e não viu e nem foi encontrado por outro ser. Não vejo como viver no mundo de hoje sem influências, até as mudanças climáticas nos influenciam. Existem sim, seres que sofrem menores influências, mas em algum momento isso ocorre, e estes se dizem livres, por serem menos seduzidos por alguma influencia.

Este livro me influenciou menos que A Odisséia, acredito que no momento de vida que eu estava quando comecei A Odisséia, me encontrava mais sensível e sofrida por isso me identifiquei mais, e gostei mais. No livro O Retrato de Dorian Gray, já me encontro mais inteira quanto a minha vida, o que fica mais evidente para o meu momento, são as influencias e reações de cada um, que ocorrem de acordo com o momento de vida da pessoa, e talvez um aprendizado quanto a culpa, ou seja, não tentar procurar o culpado e sim a solução para continuar a viver essa vida cheia de mistérios e que talvez quando ela acabe, venhamos a compreendê-la.

Para o momento gostaria de agradecer por poder participar e enriquecer meus conhecimentos, principalmente quanto aos meus sentimentos, e posso dizer que eles estão mudando, estão sofrendo influências pelas reuniões e estas são desejadas por mim.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

HUMANIDADES E HUMANIZAÇÃO EM SAÚDE: Ciclo de Encontros de Estudo e Discussão

É com muita satisfação que participamos a todos a abertura do GRUPO DE ESTUDOS HUMANIDADES E HUMANIZAÇÃO EM SAÚDE: Ciclo de Encontros de Estudo e Discussão com início no 1º Semestre de 2011. Esta iniciativa vem contemplar a necessidade de problematizarmos os pressupostos teórico-filosóficos que fundamentam a linha de pesquisa Humanidades e Humanização em Saúde do Grupo de Pesquisa Humanidades Ciências e Saúde (CNPq).

Nível: Pós-Graduação
Público Alvo: Alunos de todos os Programas da UNIFESP
Professor Responsável: Dante Marcello Claramonte Gallian (Diretor do CeHFi)
Professora Convidada: Jacqueline Sakamoto (Pesquisadora do CeHFi e Doutoranda da Saúde Coletiva- EPM-UNIFESP)
Promoção: Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde (CeHFi)
Período: de 17 de fevereiro a 23 de junho
Horário: 5ªs feiras – 10h às 12h
Carga Horária: 60h (didática + atividade)
Créditos: 5 [Ao aluno de pós-graduação será exigido um relatório escrito sobre a experiência do Grupo de Estudos e comentários a respeito dos livros lidos. O certificado de presença e conceito será emitido pelo CeHFi, podendo ser apresentado à Pró-reitoria de pós-graduação para reconhecimento e atribuição de créditos].Vagas: 25
Local: Anfiteatro 2 da Pró-reitoria de Graduação: Rua Botucatu 740, 1o andar.

Inscrições: Secretaria do CeHFi. Botucatu 720. Fone: 5576-4258 (falar com D. Mercedes) mon.cehfi@epm.br

Objetivo Geral:
Promover a investigação, discussão e reflexão sobre a desumanização, compreendida como fenômeno “patológico” relacionado à Modernidade, decorrente de fundamentos antropológicos do humanismo da perfectibilidade, e relacionado a isto, sua perspectiva cientificista e tecnicista hegemônica.

Metodologia:
Seminários de discussão de textos pré-definidos

Avaliação:
Ao aluno de pós-graduação será exigido um relatório escrito sobre a experiência do Grupo de Estudos e comentários a respeito dos livros lidos. O certificado de presença e conceito será emitido pelo CeHFi, podendo ser apresentado à Pró-reitoria de pós-graduação para reconhecimento e atribuição de créditos.

Obras que serão discutidas (deverão estar previamente lidas):
GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA. Discurso sobre a Dignidade do Homem. Lisboa: Edições 70, 2008.
JOHN PASSMORE. A Perfectibilidade do Homem. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.

Maiores informações:

http://www.unifesp.br/centros/cehfi/curso_grupo_humanidades.htm

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Laboratório de Humanidades 2011

Ciclo 2011 - 1º semestre

Convite: Laboratório de Humanidades 2011

O Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde comunica a abertura de mais um ciclo do LABORATÓRIO DE HUMANIDADES (ano VI – Primeiro Semestre). O LabHum é um espaço aberto aos alunos de graduação, pós-graduação, docentes e funcionários da UNIFESP, assim como para estudantes de outras universidades.

A primeira obra a ser discutida será ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Livro I, “O Inferno”.

Professor Responsável: Dante Marcello Claramonte Gallian (Diretor do CeHFi)
Professor Convidado: Rafael Ruiz (Campus Guarulhos)
Promoção: Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde (CeHFi)

Turma 01:
Sextas-feiras das 12 às 13:30 horas
18 de fevereiro a 24 de junho de 2011
Anfiteatro 2 da Pró-reitoria de Graduação: Rua Botucatu 740, 1o andar.

Turma 02:
Terças-feiras das 10 às 11:30 horas
de 15 de fevereiro a 28 de junho de 2011
Anfiteatro 2 da Pró-reitoria de Graduação: Rua Botucatu 740, 1o andar.

Para a Pós-Graduação
Público Alvo: Alunos de todos os programas da Unifesp.
Carga Horária Didática: 27 hs
Carga Horária Atividades: 33 hs
Créditos: 5
Vagas: 20 (10 em cada turma)

Inscrições:
Secretaria do CeHFi. Botucatu 720. Fone: 5576-4258 (falar com Mercedes) mon.cehfi@epm.br

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

1ª leitura pra 2011 - Inferno - A Divina Comédia


O primeiro livro do Ciclo 2011 do Laboratório de Humanidades será A Divina Comédia, de
Dante Alighieri, mas apenas o primeiro livro, Inferno.

As edições recomendadas são 1º da Editora 34 e 2º da EDUSP-Itatiaia.

Já para quem preferir baixar em formato digital:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2203

E para saber mais sobre a obra acesse:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Divina_Com%C3%A9dia

Eu adorei a oportunidade de ler essa obra, sempre tive vontade mas não coragem!

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Laboratório de Cinema

"Diretamente influenciado pelo Laboratório de Humanidades, o Laboratório de Cinema propõe a discussão/reflexão de questões essencialmente humanas através das grandes obras do cinema universal, com reuniões semanais de aproximadamente 1 hora e 30 min. As histórias possibilitadas por grandes obras dão fundamento a discussões essencialmente livres, não fundamentalmente de crítica e estética, mas baseadas na percepção individual de cada participante: uma mesma história nos afeta de infinitas maneiras, e o compartilhar desses afetos é que nutrem as discussões/reflexões."

Visite o Blog http://projetonassal.wordpress.com/laboratorio-de-cinema/

sábado, 20 de novembro de 2010

LabHum - Uma turma especial


LabHum - Uma turma especial
Upload feito originalmente por Yuri Bittar

O Laboratório de Humanidades é um "curso" muito especial, com participantes incríveis! Aqui se aplica um conceito de ensino-aprendizagem totalmente inovador, usando a literatura e a discussão livre como fatores e uma formação humanista e humanizada. Fico muito feliz com os resultados! O LabHum é meu trabalho, minha pesquisa e onde encontro meus amigos!

Fotografia feita na última reunião, em 19/11/2010, coordenada pelo Prof. Dr. Rafael Ruiz

Agradeço a todos os presentes!

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Convite: I SEMINÁRIO DE HISTÓRIA ORAL E SAÚDE

25 de novembro de 2010

Inscrições: http://dpdphp.epm.br/acad/siex/index.htm

OBJETIVO
O primeiro seminário do Grupo de Estudos em História Oral em Saúde (GEHOS) do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde (CeFHi-UNIFESP) reunirá pesquisadores, docentes e discentes interessados nas possibilidades da HO nas pesquisas em Ciências da Sáude. Pesquisadores do CeHFi apresentarão resultados dos projetos em andamento; pesquisadores de notório saber representarão grupos de HO de importantes instituições de ensino e pesquisa do estado de São Paulo; todos em cooperação para a troca de experiências acadêmicas, teóricas e práticas em História Oral.

PÚBLICO ALVO
Pesquisadores, professores, estudantes e interessados em Ciências da Saúde, História Oral, Métodos Qualitativos de Pesquisa e áreas afins

DATA E HORÁRIO
25 de novembro de 2010 – quinta-feira – das 8h às 17h

LOCAL
Anfiteatro Jandira Masur
Edifício de Anfiteatros - UNIFESP
Rua Botucatu, 862 - 1º andar (próx. Metrô Sta Cruz)

Mapa

Programação (PDF)

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Segundo Painel "Laboratório de Humanidades: uma experiência humanizadora possível."


Segundo Painel "Laboratório de Humanidades: uma experiência humanizadora possível."
Upload feito originalmente por LabHum - UFRPE

"Laboratório de Humanidades: uma experiência humanizadora possível." na Univ. Federal Rural de Pernambuco.

Veja esta e outras fotos no flickr do pessoal do LabHum da UFRPE.

O que transforma/reforma é o LabHum e não o Livro em si...

Por Laise Nucci

Quando comecei a lei a Odisséia, de imediato pensei na minha história e não podia ser diferente.

Enquanto a história é escrita, não é possível ter uma visão do porquê as coisas acontecem como acontecem. Enquanto realizamos a leitura não é possível modificar o que já está no papel, mas podemos pensar na história que estamos escrevendo neste momento. E então lembrei daquele livro chamado ZOOM, que vai mostrando diversas dimensões.
E o enquanto ficou muito forte em minha mente.

Há 10 anos meu segundo marido foi em busca de seu sonho. As notícias foram se espaçando, até que um dia, depois de 5 anos, resolvi procurar saber como ele estava, para que eu pudesse sair da condição de quem espera. Ele não tinha conseguido realizar o sonho e o orgulho não permitiu que ele voltasse, ou mandasse notícias, foi vencido na batalha. Eu saí da condição de quem espera, ele não vai voltar.

A questão dos pretendentes me chamou muito a atenção, pois, manter a situação é uma forma de garantir que não se perde, por outro lado, não se ganha. mantém-se o enquanto que é cômodo e confortável... por um tempo.

Meu filho mais velho (do meu primeiro casamento), completou 29 anos e resolveu sair do enquanto. Tinha um namoro de 10 anos e há 3 morava com a namorada. Tinha um emprego estável, com perspectiva de carreira, mas tinha um ideal e resolveu sair do enquanto, da condição de pretendente e ir em busca do sonho. Viajou sem data para voltar. Teve o movimento, eu admiro isso, admiro a coragem.

Tenho épocas na vida que fico muito satisfeita com meu trabalho, em outras nem tanto. É preciso movimento.

Há ANOS pretendo fazer o mestrado e enquanto pretendo, existe a possibilidade, não existe a negativa... O enquanto garante a possibilidade...
Laise Nucci
laiserh@yahoo.com.br

sábado, 16 de outubro de 2010

Minha Pequena Odisséia

Por Licurgo de Carvalho

Venci a minha guerra de Tróia. No embate fui meu próprio cavalo de pau. Arranquei das entranhas arsenais que eu nunca imaginara. Armaduras de ferro, lanças pontiagudas, venenos. Exército sanguinolento eu fui. Pilhei meus próprios recursos, violentei convicções, vivi na mixórdia. Não me chamo Ulisses, nem de Penélopes eu gosto. Não luto por Helenas, mas tenho nome espartano.

Espartano que sou inicio o caminho de volta. À minha Ítaca chegarei, ainda que outros dez anos se cumpram. Não me importa que me tentem com a imortalidade, não aceitarei me tornar desumano. Que me tentem vencer pelo esquecimento, não apagarei aquele que sou. Que sereias tentem me atirar no abismo dos mortos, não ouvirei as suas seduções. Certo, retornarei a minha casa, expulsarei invasores, reinarei até o fim.

Cada um de nós vive a sua Odisséia, o seu embate, a sua humanidade torta. Cada um tem o seu caos, a sua desordem, o seu perigo. Mas cada um também tem o seu retorno, a sua casa que lhe espera, o seu centro. E quando você estiver lá, mesmo que ninguém lhe dê a mão e o pretume da sua pele o transfigure, mesmo que você nunca tenha sabido de Helenas e Menelaus, Penélopes e Telémacos, não importa, mesmo assim você se reconhecerá Ulisses, pois a certeza que germina do caos e se fortalece no embate é heroicamente vida que floresce.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Eu não quero ser Praskóvia / Viajando pela Terra dos homens

Viajando pela Terra dos homens - Por Maria Clara Feitosa e Eu não quero ser Praskóvia - Por Maína de Souza Almeida.

Estes dois textos foram produzidos por alunas do curso de Medicina Veterinária da Universidade Federal Rural de Pernambuco. São testemunhos resultantes da experiência do Laboratório de Humanidades aplicados naquela universidade pela Profa. Rozélia, participante do LabHum-UNIFESP e primeira coordenadora de uma "filial" do LabHum em outras paragens. Profa. Rozélia aproveitou a disciplina de "Deontologia" para introduzir a Literatura no âmbito da formação médica e os resultados podem ser observados aqui. Estes testemunhos foram dados oralmente no Primeiro Seminário Humanização em Saúde - a Formação Humanística do Médico do Século XXI, realizado na UFRPE, Recife, nos dias 08 e 09 de Setembro de 2010. Abaixo os dois textos:

Eu não quero ser Praskóvia
Por Maína de Souza Almeida, discente de Medicina Veterinária da UFRPE

Não me lembro ao certo quando li meu primeiro livro. Na verdade, não me recordo de muita coisa da minha infância, que não as brincadeiras de rua e as travessuras na casa dos vizinhos (leia-se pular os muros para explorar o terreno e, de quebra, subir nas árvores para pegar frutas). Acho que estava nos meus sete ou oito anos quando comecei, movida pela curiosidade inerente a toda criança, a folhear os livros que minha irmã mais velha trazia da biblioteca do colégio para casa. Descobri um companheiro de aventuras incomum: o livro de histórias infantis. E, vejam só que surpresa!, era divertido passar meu tempo folheando aquelas páginas, uma após a outra, só para descobrir quando todos iam ser “felizes para sempre”.

Foi só na minha adolescência que me dei conta realmente do prazer que a leitura me proporcionava. Movida pela paixão que meu professor de literatura tinha pela sua matéria e tudo que ela abordava, li (quase) todo livro por ele recomendado. Vi a genialidade de Machado de Assis, no seu Memórias Póstumas de Brás Cubas, me absorver de tal maneira, que daí pra frente, ler era mais que um hábito, era uma necessidade. A adolescência passou e veio o início de minha vida adulta, e com ela a faculdade de Medicina Veterinária.

Que Choque!

Eu confesso que definitivamente não estava preparada para o que viria. Já no primeiro período, perdi boas noites de sono estudando para as provas. Foram as minhas primeiras noites em claro gastas debruçada em cima dos livros, mas não as últimas. Se existe uma coisa que a faculdade me ensinou com magistral eficiência foi parar com o hábito desnecessário de dormir oito horas por noite. Afinal, para que dormir, não é? Aprendi desde cedo que médico não precisa dormir, não precisa comer, não precisa de lazer... tudo que um médico realmente precisa é ter em mente uma quantidade absurda de conhecimento científico aliado ao conhecimento que a prática confere. Ele deve estar sempre preparado para agir de maneira eficiente, mantendo a cabeça fria, afinal, tem uma vida em jogo, e ela depende de seus atos e decisões. Seja competente! Isso que importa.

O negócio é que, além de um punhado de cabelos brancos e olheiras gigantes, a universidade também me deu amigos muito queridos. Engraçado como pessoas com interesses em comum tendem a ficar juntas. Foi assim, um tanto que sem querer, que me aproximei de Maria Clara (“Clarinha”) e Bruna. Compartilhamos o mesmo gosto por livros, música, cinema, o mesmo senso de humor bobo e infantil e a mesma tendência natural ao ridículo. Quantas e quantas vezes não nos surpreendemos com olhares de censura por nosso jeito, digamos, teatral. Durante os últimos cinco anos de faculdade trocamos livros (já é regra, o livro de uma eventualmente deverá ser da outra), músicas, filmes, experiências, lágrimas e risos. A convivência com pessoas tão ligadas a arte, com leitoras tão inveteradas, contribuiu para que eu continuasse a minha relação com a literatura não médica, apesar do crescente espaço que a veterinária ocupou em minha vida com o passar dos anos. Houve uma época, no quarto ano de faculdade, que estive em dois estágios, uma monitoria e um projeto de extensão. Tudo ao mesmo tempo! Saia de casa às 6h e só chegava por volta das 20h, a semana inteira. Quase enlouqueci!

Com esse histórico, não é de se admirar que eu chegasse exausta no penúltimo período do curso. Ah, o décimo período... finalmente a reta final! Lembro de pegar minha grade de horário e ver a segunda-feira. Estava lá “segunda-feira, 7h – Deontologia/Medicina Veterinária”. Ignorei totalmente Deontologia, só me lembro de pensar “Medicina Legal deve ser interessante”. Chegou o primeiro dia de Deontologia que, aliás, inaugurava as aulas do semestre, e eu nem sequer me dei ao trabalho de ir. Minha irmã mais nova, que cursa direito, me preveniu “essa cadeira é muito chata, tudo que você precisa fazer é decorar o código de ética e pronto”. Que perda de tempo! Era só o que me faltava, no fim do curso ter que memorizar uma porção de leis para passar nessa maldita cadeira.

Qual foi minha surpresa quando Maria Clara, a única de nós três que se dignou a ir no primeiro dia de aula, me falou “ela vai usar Nárnia!”. Respondi “ela quem?”, no que ela prontamente me disse “a professora de Deontologia! Ela vai usar Nárnia”. Comofas, eu me perguntei. Usar literatura para ensinar leis era no mínimo curioso, além de contrariar fortemente todas as minhas idéias preconceituosas, já tão bem estabelecidas. Apareci na segunda aula e lá estava a professora Rozélia com um texto na mão “O Bem, o Mal – é tudo igual? O drama das palavras e paixões em Macbeth de Shakespeare” de autoria do professor doutor Dante Marcello Claramonte Gallian. O texto foi utilizado em sala para discussão de nossos valores morais, nossas idéias sobre o certo e errado e como aquilo era aplicado em nossa vida profissional. Tão ou mais eficiente que apenas nos apresentar códigos, o como agir, enquanto Médicos Veterinários, nos foi apresentado de maneira tal, que o que prometia ser a cadeira mais chata do semestre, se tornou a mais interessante. Não só era um alívio em meio as outras matérias, como me trouxe alguns questionamentos enquanto leitora.

A leitura do texto do Prof. Dr. Dante me deixou curiosa quanto a Obra na qual o texto se baseou. Daí para a compra do livro foi um pulo. Encorajada pela discussão em sala de aula, li Macbeth tentando captar cada mensagem, cada lição, busquei na leitura mais que o prazer de uma boa história, busquei aprendizado. Depois de Macbeth, nunca mais li um livro sem tirar algo dele e sinceramente, tenho vontade de procurar cada detalhe perdido nos livros que já li. Por hora, a curiosidade que me leva em busca do próximo livro que eu simplesmente P-R-E-C-I-S-O ler, me impede de voltar aos já explorados. Não tem importância, a melhor coisa dos livros é que eles sempre estão lá, esperando para quando for necessário nos ceder um novo conselho, nos premiar com uma nova descoberta, não importa quantas vezes já o tenhamos lido, a experiência nunca é igual. A história não muda, mas sim o leitor, que nunca será o mesmo após a última linha.
Finalizo comentando sobre o livro do qual tirei a idéia do título deste texto. Li recentemente “A Morte de Ivan Ilitch” romance de Liev Tolstói. O livro chegou a Maria Clara através das mãos da prof. Rozélia, e como livro de uma é livro de todas, ele chegou a mim. Ainda não fui capaz de digerir todas as impressões que o livro deixou em mim, mas tem um questionamento em particular, o das minhas próprias atitudes, que não me deixa em paz. Será que, a profissão que escolhi, que tem guiado todas as minhas escolhas até hoje e que se tornou a prioridade da minha vida, me tornará uma “Ivan Ilitch”? Será esse o preço a pagar? Terei que ser inteiramente racional e sempre fazer o que preciso for para atingir a satisfação no trabalho? Para ser médico, é necessário que se sacrifique sempre uma parte da vida? E se sim, valerá a pena?

Não é só o modo “Ivan Ilitch” de viver que tem agitado minhas idéias. A frieza e o egoísmo de sua mulher, Praskóvia Fiódorovna, a qual se mostra incapaz de sentir genuína preocupação com o companheiro, não passou em branco. Quantas vezes não nos deparamos com “Praskóvias”? Quantas vezes não nos “recompensam” com falsas preocupações? Quantas vezes não dirigimos esses consolos vazios aos outros? São tantas sentenças vazias ditas automaticamente, que quem as profere já nem sabe o que diz, apenas fala o que é esperado porque é o “certo” a se fazer. Só tenho em mente que não quero me transformar em alguém incapaz de me sensibilizar verdadeiramente com a dor alheia, alguém incapaz de lidar com o sofrimento, seja o meu próprio, ou o dos outros. Escolho desde já ter coração. Escolho não fugir. Escolho compartilhar o pesar em vez de me esconder atrás de uma armadura de gelo. Não, eu definitivamente não quero ser Praskóvia.


Viajando pela Terra dos homens
Por Maria Clara Feitosa, discente de Medicina Veterinária da UFRPE

Existem duas maneiras de ler Terra dos Homens do Antoine de Saint-Exupéry: da maneira como li, e da maneira como irei reler!
Meu nome é Maria Clara Feitosa, sou estudante de Medicina Veterinária na UFRPE e sempre tive interesse por livros. Na minha infância, a estante de minha mãe era constantemente perturbada por minhas mãos e olhos fascinados. Lembro-me da vez que tentei ler um livro que acredito até mesmo agora, já adulta, não vou conseguir entender. Intitulava-se “Nostradamus” e não me recordo do autor. Li cinco páginas e desisti.

Como em todos os outros aspectos da minha personalidade, foi com 15 anos que comecei a ter o gosto por livros que tenho até hoje. Foi quando um garoto, inconsciente do que estava prestes a fazer, me perguntou o que eu gostaria de ganhar de aniversário. Eu, meio tendenciosa, pedi o livro do J. R. R. Tolkien, O Senhor dos Anéis. Sim, estava passando no cinema naquela época. Chamo o garoto de inconsciente porque ele não sabia que estava criando, sem intenção nenhuma, é claro, uma ‘Ringer’. Bom, eu nunca acampei fora do cinema, nem me fantasiei de ‘cosplay’, mas sem dúvida nenhuma fui uma dos puristas que xingavam no cinema o fato do diretor ter cometido a heresia de excluir do filme o personagem Tom Bombadil. Para mim, ele não era um personagem “excluível”! Ponto! Enfim, eu li o primeiro livro umas 5 ou 6 vezes e passei férias inteiras dentro do quarto ao som da Alanis Morissette (não me pergunte porque essa trilha sonora) lendo a trilogia. Ainda hoje me contenho para não começar a compulsão novamente.

Com o tempo a minha estante foi ficando mais cheia. E eu me via carregando um livro constantemente dentro da mochila, para onde quer que fosse. Me lembra uma das personagens principais do seriado americano “Gilmore Gilrs”. A Rory Gilmore me causa inveja até hoje pela quantidade de livros que ela leu. Em algum dos episódios a mãe dela, Lorelai, questionava o peso de sua mochila, e ela respondia que levava muitos livros além dos que ela precisava levar pra escola: “Um para esperar o ônibus, um para a hora do almoço, um para o ônibus de volta, e outro para o caso de enjoar de qualquer um dos outros”, ela dizia.

Eu concluo disso tudo que é de minha natureza ser assim, eu e meus livros. Mas nunca passou pela minha cabeça que eu ainda tinha que aprender a ler e a ser humana. Muito menos que eu iria perceber isso numa disciplina da faculdade. Como assim? Aqui, em meio às disciplinas sobre Doenças metabólicas de ruminantes, inspeção de carne e derivados, clínica de equinos e suínos, uma que eu ignorei completamente.

Estamos acostumados a aulas de ‘oses’: “Bom dia, bacterioses, Introdução, etiopatogenia, sinais clínicos, necropsia, algumas piadinhas no meio, histopatológico, microbiológico, tratamento, prevenção, boa tarde.” Nada contra os professores. Alguns deles são até muito legais. Daqueles que você lembra fácil para o resto da sua vida. Mas não dá para ignorar o fato de que é isso o que eles fazem. Às vezes tão rápido que a mão dói de tanto escrever. Dói até desistir. Até então eu devia saber tudo memorizado para a prova. Não importa para a avaliação se eu sei o conteúdo ou se eu memorizei o conteúdo. A avaliação não se importa com isso.

Esse tipo de matéria dá um nó na sua cabeça! É tanta coisa que você se assusta por não saber de tudo aquilo na ponta da língua. Dá medo pensar que um dia você pode se deparar com algo daquele tipo e não lembrar do que fazer. Dá para imaginar seis dessa ao mesmo tempo? Às vezes nós nos deparávamos com cadeiras menos técnicas e mais conceituais, mas além da baixa assiduidade do professor [isso mesmo, do professor], quando este aparecia, os textos eram tão diferentes do que estávamos acostumados que, por mais simples que fossem, pareciam extremamente difícil de entender. Não davam aquele equilíbrio pretendido.

Primeiro dia de aula do semestre, sete e meia da manhã, todo mundo com olheiras e ‘ressaca’ de férias e em frente à sala de aula falo para quem quer ouvir: “Meu Deus, Deontologia à essa hora da manhã, ninguém merece! Deve ser muito chato!”

Interessante como as coisas acontecem, não é verdade! A porta da sala da professora que ministraria a cadeira naquele semestre era exatamente ao lado do banco em que eu estava sentada profetizando o futuro amargo das nossas segundas-feiras. Eis que a professora aparece logo após isso dizendo: “Ah, vocês são meus alunos de deonto?”
Eu não vou descrever o ‘quase infarto’ que sofri naquela hora, mas eu imediatamente pensei no meu novo futuro que acabara de se formar: “Será que não achei suficiente que as segundas serão tortura pela matéria chata que vamos estudar que tinha de criar um desafeto com a professora desta mesma matéria? Que bom!” Eu não podia deixar de pensar também em como é ‘estimulante ‘ um início de semestre desse.

Ao entrar na sala eu vejo a professora, que já havia começado a falar, com um livro de capa familiar nos braços. Eu aperto os olhos e reconheço a capa com o leão amarelo. Só para constar: para mim, quem lê As Crônicas de Nárnia é uma pessoa legal. Cinco minutos e a até então carrasca se torna uma pessoa legal. E eu nem precisei trocar uma palavra com ela! Foi apenas o tempo de terminar a apresentação da cadeira e da metodologia que seria abordada naquele semestre, e isso levou cerca de meia hora, que minha expectativa para aquela matéria mudou da água para o vinho. Ela ia utilizar As Crônicas de Nárnia para ensinar na veterinária!

A disciplina foi muito mais do que eu havia imaginava que seria. A gente realmente se surpreendeu com algumas pessoas. E isso é bom! Lembra-nos que as outras pessoas também são cheias de todo o tipo de sentimentos que a gente tem. Inclusive as pessoas que conviveram conosco por anos. Porque fechamos os olhos para isso mesmo? Deve ser aquela maldita tendência que o homem tem de olhar para o próprio umbigo como se fosse um deus. A gente acaba perdendo muito a nossa volta por causa disso.

Outra coisa que eu percebi é que por mais que eu leia, eu sei que eu absorvo muito menos do que o autor pretende passar naquele texto. Na verdade, eu descobri que eu não sei ler. Digo isso porque, quando a professora passou um texto sobre interpretações de um livro que eu já havia lido eu fiquei chocada com o tanto de coisa que eu deixei passar. Eu vi daí que em tudo o que eu já havia lido poderia haver coisas que deixei passar por que eu não sei ler. Eu comecei a dar muito mais valor àquele momento de reflexão pós-leitura.
Eu fiquei muito feliz com essa experiência. Não só por mim, mas porque eu tenho certeza que para muitas pessoas ficou alguma coisa que eles até o fim da vida vão lembrar, e, talvez, na hora de tomar algum tipo de decisão ou julgar algo ou alguém, faça toda a diferença.

Não tenho certeza se isso acontece muito. Eu espero que sim, porque mesmo sendo ruim, se for uma coisa comum, quer dizer que é comum superar isso. Mas acontece que você chega ao final de um curso profissionalizante e é opressor o fato de você se ver fazendo um monte de coisas, sabendo um monte de coisas e de repente, não vê mais sentido naquilo. Eu entrei na faculdade querendo distâncias das pessoas, porque eu achava um saco lidar com elas. E sabendo que ia trabalhar com animais silvestres, eu pensava “ótimo, não tem dono”. Mas as relações humanas são inevitáveis, dentro e fora de nós. E ao final, vendo que por causa dessa tendência de me afastar das relações humanas, ficou faltando algo, uma lacuna. Sei que preciso de muito ainda para poder preencher essa lacuna. Sinceramente eu acho que é o tipo de coisa que você nunca pode estar “especializado” o suficiente. Mas talvez simplesmente o fato da pessoa querer seja algo bom, até extraordinário. Não deveria ser. E há quem lute para que deixe de ser. Mas é.

E é por isso que há duas maneiras de ler Terra dos Homens. Uma releitura pode falar muito sobre o que você foi e o que você é agora. Antes, Terra dos Homens era um livro maravilhosamente escrito por um grande autor. Não tenho certeza do que será, mas tenho certeza de que tudo o que eu “vi” junto a ele, agora, vai ser muito mais que aventuras, lugares exóticos e pessoas excêntricas. Eu acho que será um homem enxergando os homens cercados pela Terra.

Concluo com um trecho de um capítulo que Saint-Exupéry dedica ao seu amigo Guillaumet, e acho que agora realmente o entendo: “O uso de um instrumento seco não fez de você um técnico seco. Sempre me pareceu que as pessoas que se horrorizam muito com nossos progressos técnicos confundem o fim com o meio. Na verdade, quem luta apenas na esperança de bens materiais não colhe nada que valha a pena viver. Mas a máquina não é um fim (...)é um instrumento .”

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Luz no pântano [1]

por Jacqueline Sakamoto
Participante do LabHum


Certa vez, um erudito resolveu fazer ironia comigo: perguntou-me: “O que é que você leu?” Respondi: “Dostoievski.” Ele queria me atirar na cara os seus quarenta mil volumes. Insistiu: “Que mais?” E eu: “Dostoievski.” Teimou: “Só?” Repeti: “Dostoievski.” O sujeito aturdido pelos seus quarenta mil volumes, não entendeu nada. Mas eis o que eu queria dizer: pode-se viver para um único livro de Dostoievski. Ou uma única peça de Shakespeare. Ou um único poema não sei de quem. O mesmo livro é um na véspera e outro no dia seguinte. Pode haver um tédio na primeira leitura. Nada, porém, mais denso, mais fascinante, mais novo, mais abismal do que a releitura.[2]


Compartilho com Berdiaeff a seguinte posição: “Desde sempre, dividiram-se para mim os homens entre os dostoievskianos e aqueles a quem o espírito de Dostoievski era estranho”[3]. E se “Há uns poucos livros totais, [...] que nos salvam ou que nos perdem.”[4] meu romance total, que permanece em minhas veias é Os Demônios[5]. Ou ainda, permanece nas “dobras da memória”[6] confundindo e trazendo luz, como o conhecido e o surpreendentemente novo, e “que nunca terminou de dizer aquilo que tinha de dizer”[7].

Com a publicação do romance Os Demônios Dostoiévski passa a ser considerado O Profeta do Niilismo antecipando o destino histórico da Rússia e voltando o espelho para o Ocidente. O Niilismo é um termo de semântica instável largamente usado na época de Dostoiévski. Descreve principalmente as ações radicais da geração de 1860 que pretendiam realizar a transformação do mundo tendo como base o materialismo, o utilitarismo e o cientificismo. Se por um lado, o sentido literal da palavra presume a ausência de todo valor ou sentido, em sua manifestação russa pela geração de 1860 toma corpo com base numa enorme fé no poder da ciência. As questões humanas eram compreendidas da mesma maneira que qualquer outra questão relativa à natureza com base nas ciências naturais. O homem passa a ser compreendido como organismo natural e não possuidor de nenhuma outra natureza que se revela por si mesma. Alexander Herzen descreveu os niilistas como sendo aqueles que aplicam os métodos de laboratório na vida. A atitude niilista buscava ainda a emancipação pessoal, sendo que, todas as instituições vistas como barreiras à realização de todo potencial individual deveriam ser destruídas. Dostoiévski não via o niilismo como um fenômeno meramente histórico, mas antes, como uma questão moral e religiosa. Nela a experiência da liberdade deve justamente passar pela semelhança com o Nada, a projeção de uma idéia de homem e de humanidade que nega a realidade do mal e do pecado leva a experiência da própria decomposição.[8]

Na virada do século XIX para o século XX surgiu no idioma russo uma nova palavra: dostoiévschina. Este vocábulo caracteriza um estado complicadíssimo da alma humana, um caso de consciência sem solução aparente para paixões, vícios, virtudes e abnegações. Chostakóvski afirma que se a pronúncia fosse mais fácil acabaria por ganhar uso universal porque Dostoiévski, e os problemas que se apresentam em seus romances, são universais.[9] E é neste sentido que se deve compreender seu realismo profundo e religioso, próprio da vida, que exprime para além da objetividade do mundo o destino interior dos humanos.


Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. [...] Mas, apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa ainda mais.[10]


Nas memórias do anti-herói do subsolo encontramos uma advertência de Dostoievski já no início da obra, o personagem é um dos representantes de sua geração que vive seus dias derradeiros. Nele encontramos toda sua crítica ao extremo racionalismo e a fé cega na mentalidade positivista e científica. A doença do homem do subsolo, que vive em seus quarenta anos, é a consciência dolorosa e forte do inevitável de sua própria condição, de onde, “[...] sim fica-se comprimido pela consciência do mingau a que nos reduziram”[11]. Sendo sua antítese a consciência do imbecil, um homem/ camundongo, uma criatura sem caráter e de ação, limitada em suas possibilidades.

O anti-herói dostoievskiano denuncia e antecipa o que existe de anti-humano na posição dos niilistas que aplicam os métodos da ciência na vida. A crença ingênua no progresso que acaba por esvaziar a existência quando prescreve calculadamente os hábitos, manias, vícios e afetos a um coeficiente comum mínimo necessário a sua planificação. Uma vida decente que em nada se diferencia de todas as outras[12]. Conspiração e terror tomam espaço na fina e complexa tessitura da vida e que tem em sua base uma Filosofia da Digestão[13]. E é sentida pela voz do subsolo como doença. Se a consciência perspicaz é sempre uma doença, que doa ainda mais.


O ser humano é o único que se falsifica. Um tigre há de ser tigre eternamente. Um leão há de preservar, até morrer, o seu nobilíssimo rugido. E assim o sapo nasce sapo e como tal envelhece e fenece. Nunca vi um Marreco que virasse outra coisa. Mas o ser humano pode, sim, desumanizar-se. Ele se falsifica e, ao mesmo tempo, falsifica o mundo[14].


“E, assim, falsários da vida, dos valores da vida, vamos fazendo as nossas poses políticas, ideológicas, literárias, religiosas, etc., etc.”[15] Existe entre Dostoievski e Nélson Rodrigues um laço de família, almas parentas, que colocam seus personagens sempre no limiar. Para além de uma existência aparentemente estéril, cinzenta e medíocre eles nos revelam realidades abissais. E será na fuga de si mesmo, de sua doença, que o homem se falsifica. Nenhum conforto é possível, de um lado a dor (da consciência que vem do subsolo), e de outro a morte em vida (a vida decente do homem/ camundongo).

No confronto com seu destino último, o homem oscilante entre suas duas naturezas, mergulha sofregamente numa nostalgia, na busca da cena de Origem: O Paraíso Perdido. Se em Nélson tal sentimento que busca desesperadamente uma espécie de retorno a uma existência integral termina no incesto[16], em Dostoievski encontramos os sonhos: do Homem Ridículo[17] e no sonho de Stavróguim[18]. Ou ainda em Machado, no desejo particular e casmurro de Bentinho[19] em reproduzir a casa onde se criou, da rua de Matacavalos no Engenho Novo, com o propósito de fincar bases para sua confissão. Neste retorno nenhuma finalidade didática deve ser identificada nos autores. Será no choque, no dilaceramento de nossas frustrações, e, sobretudo, no reconhecimento que “O personagem vive a vida que deveria ser a nossa, a vida que recusamos”[20]. Neste sentido a obra literária, ou a peça trágica, tem o poder de criar vida e não falseá-la. Quem “Nada conhece, nada sabe dos desesperos, das paixões, das agonias que a poderiam alçar à plenitude de sua condição humana.[21]”, mais finge do que vive, nada percebe de sua condição pobre e miserável. Aniquila assim toda possibilidade de uma nova e decisiva dimensão interior.

Se “a consciência da vida – é superior à vida. A ciência nos dará sabedoria, a sabedoria revelará as leis, e o conhecimento das leis da felicidade é superior à felicidade.” passaremos necessariamente a “[...] amar a si mesmos mais do que aos outros [...]”[22]. Quando um ideal de humanidade e fraternidade é assumido como guia de nossos passos o sofrimento do homem real é que fica de fora. Se a idéia de vida é maior do que a vida, a vida é falsificada. Sendo o mundo algo que só em mim se realiza, vida e mundo dependem de mim, como um atributo de minha consciência. E sendo eu dono de minha própria vida a realização plena de minha liberdade será a plena extinção do mundo, “dou-me um tiro e não há mais mundo, [...] porque vão sumir, talvez, todo esse mundo e toda essa gente – só eu é que existo”[23]. Do alto do orgulho ridículo – oposição polarizada da humildade - o homem perde-se na afirmação de si mesmo, e a atividade do discernimento é corrompida pela idolatria, pela idolatria do si mesmo e pela idolatria a sistemas de pensamentos que definem homem e mundo.[24] Ao proclamar sua autonomia partindo de abstrações desconectadas com a vida o homem torna-se um impostor de si mesmo. Uma representação mascarada e ritualística, neste horizonte só a esterilidade é possível. A figura do impostor (palavra russa usada para falsos pretendentes ao trono) traz ecos do conceito existencialista de fé falsa perpetuando a cisão entre o mundo de possibilidades teoréticas intermináveis e o mundo concreto.[25] Ou seja, perpetuando a cisão ao elevar-se ao nível de Deus o homem chegará inevitavelmente à descriação.[26]


Desvele seu orgulho e seu demônio! Acabará trinunfando, atingirá a liberdade ...

[Tíkhon, o perito em coração][27]



***


A consciência científica do homem moderno aprendeu a orientar-se em complexas condições de um “universo contingente”, não se desconcerta diante de quaisquer “indefinições”, mas sabe levá-las em conta e calculá-las. Essa consciência há muito acostumou-se ao universo einsteiniano com sua multiplicidade de sistemas de cálculo, etc. Mas no campo do conhecimento artístico continua, às vezes, a exigir a mais grosseira, a mais primitiva definição que, evidentemente, não pode ser verdadeira.[28]


No lugar das sínteses sofisticadas, porque cientificamente bem calculada, o trabalho com obras de arte não deverá levar a visões harmônicas e coesas das coisas. Os projetos utópicos e totalizantes não podem mais ser considerados desejáveis. Embora ainda presentes.[29] Ao contrário, é a originalidade que pode contrapor o que Bakhtin identifica depreciativamente na literaturologia[30], a ciência aplicada na literatura. Nele a oposição as relações mecânicas é o dialogismo: onde começa a consciência começa o diálogo, a vida é uma contraposição dialógica que compreende: a coexistência e a interação, simultaneidade e confrontação. Não há categorias genéticas nem causais, nem acabamentos ou sistemas. Enfim, chegaremos a inconclusibilidade e à precária infinitude da consciência. O sentido sério e profundo de seu trabalho pode ser assim expresso: não se pode transformar o homem vivo em objeto mudo, definido, à revelia. Nenhuma consciência se converte definitivamente em objeto da outra.[31]


O homem nunca coincide consigo mesmo. [...] a autêntica vida do indivíduo se realiza como que na confluência dessa divergência do homem consigo mesmo, no ponto em que ele ultrapassa os limites de tudo o que ele é como ser material que pode ser espiado, definido e previsto “à revelia”, a despeito de sua vontade. A vida autêntica do indivíduo só é acessível a um enfoque dialógico, diante do qual ele responde por si mesmo e se revela livremente. [...] uma verdade à revelia, transforma-se em mentira que o humilha e mortifica caso esta lhe afete o “santuário”, isto é, o “homem no homem”.[32]


O trabalho filosófico de Bakhtin, inspirado em Dostoiévski, nos diz respeito a relação entre autor e herói, Criador e criação, e, sobretudo, na relação entre seus personagens. Porém, ampliemos a questão para a dialogicidade estendida na relação da obra com seus leitores: a experiência original que as obras clássicas nos proporcionam, nunca à revelia, mas antes uma ampliação da consciência entre seres que se sabem inacabados. A obra clássica, moderna ou antiga, pode ser considerada o “equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs” [33], comporta uma relação pessoal de identificação tornando-se o seu clássico, assim como de forte rejeição e antítese.


Uma descoberta artística ocorre cada vez como uma imagem nova e insubstituível do mundo, um hieróglifo de absoluta verdade. Ela surge como uma revelação, como um desejo transitório e apaixonado de apreender, intuitivamente e de uma só vez, todas as leis deste mundo – sua beleza e sua feiúra, sua humanidade e sua crueldade, seu caráter infinito e suas limitações. O artista expressa essas coisas criando a imagem, elemento sui generis para a detecção do absoluto. Através da imagem mantém-se uma consciência do infinito: o eterno dentro do infinito, o espiritual no interior da matéria, a inexaurível forma dada.[34]


Não se sai impune deste encontro. Enquanto equivalente do universo mantém a integralidade do livro total. Que “provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe”.[35] E que é capaz de relegar ao pano de fundo o barulho de nossas atividades pragmáticas e utilitárias. Mas, jamais prescinde delas. “A idéia do infinito [...] pode ser apreendida através da arte, que torna o infinito tangível. Só se pode alcançar o absoluto através da fé e do ato criador”.[36] Assim a leitura dos clássicos já configura uma contradição com o ritmo mecânico de nossas vidas. E neste caminho acabamos sendo lidos em relação ou em oposição a ela. Tal qual as consciências dostoievskianas nos romances. Nenhuma utilidade ou fim deve ser vislumbrado no horizonte, mas antes, no lugar do dever ou do respeito esta aproximação diz respeito a uma atividade desinteressada, onde só o amor (desinteressado por definição) garante que esta relação não seja abusiva.[37] Porque “A realidade toda – escreveu Dostoiévski – não se esgota no essencial, pois, uma grande parte deste nela se encerra sob a forma de palavra futura ainda latente, não-pronunciada”. [38]


Os problemas técnicos são brincadeira de criança: pode-se aprendê-los com a maior facilidade. Pensar com independência e dignidade, porém, é muito diferente de aprender a fazer alguma coisa, ou de tornar-se uma personalidade inconfundível. Ninguém pode ser forçado a carregar um peso que não apenas é difícil, mas, às vezes, impossível de suportar. No entanto, não há outra saída: tem de ser tudo ou nada.[39]


A força provocadora das obras dispensa um operating instructions, porém, nos leva a pensar nas possibilidades de conciliação entre uma atividade criativa de leitura que não abuse da relação com a integralidade da obra e mantenha, ao mesmo tempo, uma possibilidade de trânsito original com liberdade de expressão. No prefácio de Aderbal Freire-Filho para as Peças Míticas de Nélson Rodrigues[40] encontramos a posição de um diretor de teatro, um encenador, que ao trazer sua experiência na montagem de Senhora dos Afogados escolheu dois aspectos da peça, com a intenção de ajudar o leitor a montar sua própria encenação. Um deles constitui para esta reflexão “uma frase que compromete até o infinito”[41]: “Em cena, também, os vizinhos. São figuras espectrais”.

Pensando no auxílio ao encenador/ leitor Aderbal Freire-Filho nos indica que o texto secundário da peça (escrito pelo autor) nos leva a pensarmos neles como um conjunto (vizinhos), porém, diferenciados, cada um vem de sua própria casa, tem personalidades e vidas distintas, porém: ”[...] eles tornam sua presença permanente na casa dos Drummond muito mais invasiva e expressiva e dão à irrealidade dessa presença uma dose de realismo que determina uma tensão: e a poética cênica vive de tensões.”[42]! Assim como a leitura de textos literários. Na continuidade, cada vizinho diferenciado entra em cena com sua própria casa e juntos criam o mundo que é inseparável da condição de vizinho, vila, rua, vizinhança. Porém, entram em cena com aquilo que lhes é próprio e peculiar, sem confusão nem mistura. E assim constituem no drama uma dinâmica própria entrando e saindo de cena. “Quando os dez vizinhos sentavam nas dez cadeiras em torno da grande mesa dos Drummond, o palco ganhava nova dimensão [...]”[43]. De certa maneira aqui a casa dos Drummond se torna maior que o todo, contém nela a casa, a rua, a vizinhança. Mas, apesar da presença invasiva e constante dos vizinhos o drama central da peça segue em sua integralidade, contém o todo, suporta a invasão, e permanece em sua trama original.

Neste ponto será que poderíamos suportar o peso, no tudo ou nada, de nos considerarmos vizinhos em relação a leitura da obra de arte? Vejamos.

Como vizinhos/leitores passamos a freqüentar a casa dos Drummond/ obra literária, uma presença invasiva e constante, porém, uma vez nela a casa/ obra se torna maior que o todo, comporta nossa presença que não prescinde do barulho de fundo de nossa realidade imediata, permanecendo integral em sua trama. Na indicação da época em que se passa a peça encontramos “Quando quiser”[44]. Característica marcante das obras clássicas, ou peças trágicas, onde o tempo é integral, “Não existe morte, existe imortalidade. O tempo é uno e indiviso, [...] A uma mesa sentam-se avós e netos...”.[45] E no espaço, cada um dos vizinhos/ leitores é diferenciado, entra e sai da obra carregando, ou voltando, para sua própria casa, não são personagens propriamente ditas, mas figuras espectrais, que estão em todo lugar ao mesmo tempo. Nem podem ser considerados como uma platéia, eles presenciam cenas que a platéia não vê: sobem em cadeiras e espiam por cima do biombo uma cena conjugal.

Se acrescentarmos ainda uma experiência musical, proposta por Huxley[46], onde os afetos humanos oscilam, e seus personagens majestosos e medíocres se tornam instrumentos ou melodias que se alternam numa sinfonia executada do mais profundo vazio, a impunidade é impossível. O vizinho/ leitor realiza seu Contraponto, pessoal ou em coro, avançando em cena corajosamente ou acuado num canto, são solícitos ou deslumbrados, insultam e prevêem a morte, tem gestos de ira e de maldição, mas não determinam o desfecho da obra – os personagens nada vêem, nada sentem. Arriscamos no máximo um cochicho:


Vizinho – Mas foi suicídio ou não foi?

Vizinho – Foi, sim.

Vizinho – Não foi.

Vizinho – A menina se matou.

Vizinho – Que o quê!

Vizinho – Dou-lhe a minha palavra![47]


* * *


O tema da santificação da vida humana atravessa a obra de Dostoievski, mas, chamaremos com especial atenção algumas características do personagem central de O Idiota. O Príncipe Liev Nikolaievitch Michkin é nobre de estirpe antiga, mas nada possui materialmente neste mundo. Em seu nome encontramos uma homenagem ao Conde Tolstoi, igualmente nobre Liev Nikolaievitch Tólstoi, porém Michkin significa em russo ratinho e Liev é leão. Assim temos um leão, filho de Nikolai, da estirpe ratinho. Grandeza e pequenez reunidas num só personagem. Um jovem de aparência agradável, mas que guardava no olhar algo de sereno e pesado, talvez epilepsia, e que ele próprio rejeita como denominação de loucura. A figura Michkin atravessa o romance e sua grandeza e pequenez são inapreensíveis racionalmente, sendo comum ser designado pela fortuna crítica como o personagem que ilumina por contraste. Para Dostoievski uma figura amada, crística, ou ainda, “[...] tu, príncipe, tu és um iuródiv, e Deus ama pessoas assim como tu”.[48]

Eternamente estranho e eternamente próximo e percebido como um Idiota. Michkin toca os personagens e os deixa, os devolve, a si mesmos, como em toda situação de amor - desinteressada por definição - partilhada entre seres humanos. Ele concentra em si todo o conteúdo humano trágico, sendo inacessível e indefinível jamais será apreendido em sua essência íntima, mas aqui encontramos o que a tragédia/ obra de arte nos traz de fecundidade. Voltemos a nossa condição de vizinhos/ leitores, que freqüentamos a obra/ casa dos Drummond, somos estranhos e próximos, os personagens permanecem inacessíveis à nossa invasão e ao final somos devolvidos a nós mesmos. Nesta relação desinteressada o retorno as nossas casas traz ou comporta, inclusive, que no coro, as figuras espectrais:


Os vizinhos resolvem tirar o rosto e colocar a máscara.[49]


Michkin – o Amor andando no mundo - ilumina por contraste porque nós somos escuridão. Indefiníveis, conflitantes, contraditórios e polarizados. Num retorno único e original que pode fazer frente à falsidade da vida mecânica e prescrita,


Apenas um homem sabe que a felicidade e tormento são a mesma coisa, em todas as experiências mais intensas e em todos os momentos fecundos da vida: é o criador. Mas muito antes dele, um ser humano atingido pelo amor estendeu, suplicante, suas mãos para uma estrela, sem se perguntar se era prazer ou dor que implorava dela ...[50]


Assim, sendo o homem o único que se falsifica melhor lançar alguma luz, ainda que:


O vizinho põe uma máscara hedionda que, na verdade, é a sua face autêntica.[51]



Julho de 2010



Notas:



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[1] Referência, ou reverência, a frase “Meus dramas são como a luz cruel do sol caindo sobre um pântano”. RODRIGUES, Nélson. Teatro Completo de Nélson Rodrigues: Peças Míticas. v.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 277.

[2] RODRIGUES, Nélson. O Óbvio Ululante: as primeiras confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 54.

[3] BERDIAEFF, Nicolai. O Espírito de Dostoiévski. Trad. Otto Schneider. Rio de Janeiro: Editora Panamericana, [194-?], p. 5.

[4] RODRIGUES, Nélson. O Óbvio Ululante: as primeiras confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 54.

[5] Cf. DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Mikháilovitch. Os Demônios. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2004.

[6] CALVINO, Ítalo. Por que ler os Clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 11.

[7] CALVINO, Ítalo. Por que ler os Clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 11.

[8] Cf. Kenneth LANTZ, The Dostoevsky Encyclopedia apud SAKAMOTO, Jacqueline Izumi. Religião e Niilismo: Paidéia Crítica em Os Demônios de Dostoievski. 2007. 143f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUCSP, São Paulo, p. 36, nota 54.

[9] Cf. Paulo CHOSTAKOWSKY, História da Literatura Russa: desde as origens até nossos dias apud SAKAMOTO, Jacqueline Izumi. Religião e Niilismo: Paidéia Crítica em Os Demônios de Dostoievski. 2007. 143f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUCSP, São Paulo, p. 37, nota 58.

[10] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Mikháilovitch. Memórias do Subsolo. Trad. Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 15.

[11] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Mikháilovitch. Memórias do Subsolo. Trad. Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 21.

[12] Cf. TOLSTÓI, Lev. A Morte de Ivan Ilitch. Trad. Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2009.

[13] DOSTOEVSKY, Fyodor. The Notebooks for The Possessed. Edited by Edward Wasiolek. Translated by Victor Terras. Chicago: The University of Chicago, 1968, p. 253.

[14] RODRIGUES, Nélson. O Óbvio Ululante: as primeiras confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 93.

[15] RODRIGUES, Nélson. O Óbvio Ululant,e: as primeiras confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 93.

[16] Cf. análise de Pompeu de Sousa: “São tão falsamente incestuosas, suas personagens, quanto as do Gênese. Porque o homem de Nélson Rodrigues, como o do Gênese, é a criatura diante do mundo; e a sua família é a “única e primeira” [...] da qual o “amor e o ódio teriam de nascer”. In: RODRIGUES, Nélson. Teatro Completo de Nélson Rodrigues: Tragédias Cariocas I. v.3. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 262, Apêndice.

[17] Cf. DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Mikháilovitch. Duas Narrativas Fantásticas: A Dócil e O Sonho de um Homem Ridículo. Trad. Vadim Nikitin. São Paulo: Editora 34, 2003.

[18] Cf. DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Mikháilovitch. Os Demônios. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2004.

[19] Cf. ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Porto Alegre: L&PM, 2010.

[20] Nélson Rodrigues obre Senhora dos Afogados: RODRIGUES, Nélson. Teatro Completo de Nélson Rodrigues: Peças Míticas. v.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 297, Apêndice.

[21] Nélson Rodrigues obre Senhora dos Afogados: RODRIGUES, Nélson. Teatro Completo de Nélson Rodrigues: Peças Míticas. v.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 297, Apêndice.

[22] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Mikháilovitch. Duas Narrativas Fantásticas: A Dócil e O Sonho de um Homem Ridículo. Trad. Vadim Nikitin. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 119.

[23] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Mikháilovitch. Duas Narrativas Fantásticas: A Dócil e O Sonho de um Homem Ridículo. Trad. Vadim Nikitin. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 100.

[24] Cf. BERDYAEV, Nikolai. Slavery and Freedom. New York: Charles Scribner’s Sons, 1944.

[25] Cf. COATES, Ruth. Cristianity in Bakhtin: God and the exiled author. New York: Cambridge University Press, 2005. (Cambridge Studies in Russian Literature), pp. 30-31.

[26] Cf. EVDOKIMOV, Paul. Dostoïevski et le problème du mal. Paris: Desclée De Brouwer, 1978.

[27] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Mikháilovitch. Os Demônios. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 686.

[28] BAKHTIN, Mikhail. O Problema da Poética em Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p. 275.

[29] Cf. RIBEIRO, Renato Janine (Org.). Humanidades: um novo curso na USP. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.

[30] Cf. Em Torno a una Conversación. Entrevista concedida a Sergei Georgievitc Bocharov. In: ZAVALA, Íris (Coord.) M. Bajtin y sus Apócrifos. Barcelona: Anthropos; San Juan de Puerto Rico: Ed. De la Universidad de Puerto Rico, 1996, pp. 73-116. (Biblioteca A, Artes-Literatura, 24).

[31] Cf. BAKHTIN, Mikhail. O Problema da Poética em Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

[32] BAKHTIN, Mikhail. O Problema da Poética em Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p. 59.

[33] Cf. CALVINO, Ítalo. Por que ler os Clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 13.

[34] TARKOVSKIAEI, Andreaei Arsensevich. Esculpir o Tempo: Tarkovski. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 40.

[35] CALVINO, Ítalo. Por que ler os Clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 12.

[36] TARKOVSKIAEI, Andreaei Arsensevich. Esculpir o Tempo: Tarkovski. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 42.

[37] Sobre esta questão penso no amor autosacrificial, base da reflexão na Estética Teológica que Bakhtin desenvolve sobre Dostoievski.

[38] BAKHTIN, Mikhail. O Problema da Poética em Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p. 89.

[39] TARKOVSKIAEI, Andreaei Arsensevich. Esculpir o Tempo: Tarkovski. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 148.

[40] Cf. RODRIGUES, Nélson. Teatro Completo de Nélson Rodrigues: Peças Míticas. v.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, pp. 15-26.

[41] RODRIGUES, Nélson. O Óbvio Ululante: as primeiras confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 48.

[42] RODRIGUES, Nélson. Teatro Completo de Nélson Rodrigues: Peças Míticas. v.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 21.

[43] RODRIGUES, Nélson. Teatro Completo de Nélson Rodrigues: Peças Míticas. v.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 21.

[44] RODRIGUES, Nélson. Teatro Completo de Nélson Rodrigues: Peças Míticas. v.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 207.

[45] TARKOVSKIAEI, Andreaei Arsensevich. Esculpir o Tempo: Tarkovski. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.9.

[46] HUXLEY, Aldous. Contraponto. Trad. Erico Veríssimo, Leonel Vallandro. São Paulo: Editora Globo, 2006.

[47] RODRIGUES, Nélson. Teatro Completo de Nélson Rodrigues: Peças Míticas. v.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 212.

[48] Iuródiv, referência a figura do Louco por Cristo, uma mistura de andarilho, louco e santo. DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Mikháilovitch. O Idiota. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 33.

[49] RODRIGUES, Nélson. Teatro Completo de Nélson Rodrigues: Peças Míticas. v.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 234.

[50] ANDREAS-SALOMÉ, Lou. Reflexões sobre o Problema do Amor e O Erotismo. Trad. Daniel Abreu. São Paulo: Landy Editora, 2005, p. 47.

[51] RODRIGUES, Nélson. Teatro Completo de Nélson Rodrigues: Peças Míticas. v.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 217.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Tinta Russa, e o Método de Deus

Por Licurgo Lima de Carvalho
Participante do LabHum

O Sonho de um Homem Ridículo, Os Demônios, A Morte de Ivan Ilitch. Passei os últimos três meses assim, entre Fiódor Dostoiévski e Lev Tolstói. Roleta russa, montanha russa, com a alma russa. Ou seja, meio que ajoelhado, um tanto espremido, na porta estreita de regiões abissais.

Nunca uma literatura havia me pintado assim. Tanto que me sinto como folha de papel de arroz japonês, raro e caríssimo, colorido a grossas camadas de tinta negra e vermelha. E a imagem que se criou em mim é bela, ainda que a tintura escorra em sulcos verticais mais ou menos profundos, quase rasgando minha tecedura de papel. Não que eu me reconheça frágil, apenas um tanto raso para compreender certos matizes da alma humana: os russos querem me deixar cicatrizes, eu sei, querem se fazer indeléveis.

Ah, quantas paisagens nessa minha alma de papel de arroz! Quantas nuances de dúvida, contradição, perplexidade. Ora eu me sentindo ingênuo por não apreendê-las completamente. Ora vislumbrando nelas toda a verdade. Depois delirando com esses tipos russos meio demônios, meio anjos, cuja humanidade torta fere de sangue meu entendimento e meu coração.

Agora sei como Dostoiévski é implacável. Ele não facilita, não abranda mesmo. Temerário, joga cada vez mais tinta de corante negro. Mas também cuida de ir respingando vermelho, vermelho escuro, vermelho claro, e matizes de cinza. Por fim, essa paisagem inquieta, desconfortável, que de fato nada esclarece, mas entreabre as portas do infinito.

Quando acabei O Sonho de um Homem Ridículo disseram que tive uma reação epiléptica. Talvez epifânica. Foi uma reação sem palavras, inefável, impossível de ser elaborada instantânea e racionalmente. Mas tive a intuição de não explicá-la: eu seguiria com o próprio personagem os caminhos do coração. E não pensaria a vida ao invés de vivê-la. E não deixaria escorrer o sagrado entre os dedos da mão.

Foi assim que mais do que me sentir ridículo, eu quis ser ridículo. Porque a ridiculez daquele homem era o seu próprio coração querendo saltar pela boca. A sua ridiculez era eu arrebatado como ele na repentina certeza de que a razão não é tudo. Tampouco o método é tudo. Tampouco a ciência. E de que nós, quando demasiadamente agarrados à concretude da vida, obsedados pela especialização cerebral da vida, acabamos nos afastando dela, consumidos pela indiferença, pelo tédio, e sobretudo pela soberba de não darmos conta dos segredos da vida.

Mas por outro lado, quando a chaga do coração é por ventura exposta, e pressentimos a ação determinante e misteriosa das emoções e dos afetos no florescer da existência, um outro risco é que se apodera de nós, uma espécie de inadequação e deslocamento, e a possibilidade de nos sentirmos sempre e cada vez mais ridículos. E em sendo ridículo aquele homem sonhou. E em sendo ridículos, ele e eu, sonhamos e conhecemos a Verdade. Verdade inaudita, verdade do coração, verdade alimento da alma, que tanto desejo pronunciá-la, mas não consigo, que tanto quero vivê-la, mas tenho pudores, que tanto a vejo como real, se eu não fosse tão humanamente orgulhoso.

Foi então que a maldade se apoderou de mim, reconhecida por mim, tocada por mim. Vinte e quatro dias debruçado sobre Os Demônios. Cismado caminhei na derradeira noite. E me lembrei da crueza de Lady Macbeth e de como certo tipo de vileza me incita. Em Os Demônios é Nikolai Stavróguin o maldito sedutor. “Vou defendê-lo até o fim”, proclamei a passos largos contra o vento me preparando para o dia seguinte, quando se iniciaria o Ciclo 2010 do Laboratório de Humanidades.

Na pauta, eu imaginava Varvara, Stiepan, Piotr, Kiríllov, Chátov, Nikolai... Quantas histórias, quantas “almas indesencorajadas”, “resolutas indo à luta” (1), que na arena do LabHum enfrentariam seus demônios, assim como eu, que naquela noite nebulosa já intuía tudo do que seria capaz. Piotr Stiepánovitch é sem dúvida um grande patife - me perturbava a cabeça - porém mais descarado e enigmático é Nikolai Stavróguin, cuja patifaria é de nobre linhagem. E eu, um patife menor, chafurdando no breu entre as luzes do canteiro central, silencioso e atordoado em meio à lamentação ruidosa da Avenida Paulista, sofria naquela hora a angústia de não conseguir captá-lo, embora eu o acolhesse por inteiro num fascínio de quase prazer. Era de Nikolai a minha paixão e martírio. Era do seu veneno que eu queria beber. Eram os argumentos em sua defesa que eu pretendia tecer, vasculhando em sua névoa calada uma súplica de salvação.

Em confissão, reconheço o quanto tudo isso me faz parecer dramático. Admito até certa afetação no que escrevo. Outro dia li que “por meio da palavra escrita, nós nos livramos de alteridades incômodas” (2). Pois bem, tudo se torna mesmo pequeno quando se admite o óbvio: a) a salvação de Nikolai, ou essa minha ânsia desmedida de compreendê-lo, não passa de mera tentativa de justificar os meus próprios e medianos pecados; b) todo esse esforço virtual é vontade de desabitar os pântanos da minha existência real, pois ser Nikolai Stavróguin, afinal, é olhar a paisagem de cima, é debruçar-se em crateras, é “vaguear pelo precipício” e nele se atirar de cabeça para baixo. Por isso, o que mais amedronta Stavróguin é a mediocridade. Quanto a mim, medroso que sou, porém abissal como me pretendo, é graças à literatura que realizo tais ousadias; c) deixo a vocês, leitores, a possibilidade de tantas outras interpretações, tanto mais óbvias quanto reveladoras.

Mas Nikolai pode ser tudo, menos afetado e frívolo, menos bajulador ou interesseiro. Na verdade, parece que a ele nada interessa, mesmo que muitos tenham sido por ele seduzidos. Nikolai tinha “a beleza de uma pintura, mas, ao mesmo tempo, tinha qualquer coisa de repugnante. Diziam que seu rosto lembrava uma máscara”. Ouvi nessas palavras de Dostoiévski aquilo mesmo que me fascinou em Baudelaire, via Michel Leiris (3), para quem “a condição essencial da Beleza está num descompasso, num desvio, numa dissonância”. Pois bem, como consta na aparência de Nikolai uma gota de veneno, um desvio, uma dissonância que o faz algo repugnante - seguindo o raciocínio do próprio Dostoiévski, haveria também uma outra gota de virtude nas atitudes de Stavróguin? Naquela noite, e por muitas outras, eu acreditei que sim.

Em Os Demônios, Dostoiévski narra a história de uma conspiração política com o fim de estabelecer a “república social universal de todos os homens e da harmonia”. Os conspiradores, comandados por Piotr Stiepânovitch, são como criaturas demoníacas que andam em legiões. Ambientado numa pequena província russa, esses ativistas se organizaram “acreditando entusiasticamente que eram apenas uma unidade entre centenas e milhares de quintetos espalhados pela Rússia e que todos dependiam de algum órgão central, imenso e secreto, que por sua vez estava organicamente vinculado à revolução mundial na Europa” (4). Escrito em 1870, Dostoiévski concebeu a obra para recriar ficcionalmente um episódio verídico ocorrido em 1869, o assassinato do estudante I.I. Ivanov pelo grupo niilista liderado por S.G. Nietcháiev, autor, com o famoso anarquista Bakunin, do Catecismo Revolucionário, que se tornaria a cartilha de todo guerrilheiro do século XX.

Mas Os Demônios não é um livro político e panfletário. É um romance sobre o homem e sobre Deus, sobre as forças inumanas e sobre “homens que esqueceram quem são e por que são” (5):
Os Demônios é um romance difícil e magnífico, um romance profético sobre o destino da Rússia e sobre o século XX. A negatividade devastadora de Stavróguin e Piotr não são expressões de um mal abstrato e metafísico, ao contrário, são expressões vívidas e concretas ao longo do romance da perfeita liberdade da vontade humana. Na plenitude de tal liberdade a personalidade humana é destruída, a solidão se instala, a ligação entre os homens é cortada e as bases sociais abaladas. Dostoiévski nos apresenta um brilhante insight do estado de declínio e inadequação da alma mutilada e espiritualmente impotente. Deslocado o centro da gravidade para a liberdade da vontade humana, “emancipados” das potências de Deus, os homens passam a voar pelo espaço (6).
Na dinâmica do Laboratório de Humanidades, uma alma russa foi em mim se delineando. Intenso, extremado, abissal. Cruel, devasso, contraditório. Bom, generoso, humano. Para cada movimento meu, um olhar, uma confirmação, uma refutação. No compartilhar da história e das emoções, o instigamento, a reflexão, a compreensão, a vontade. “O objetivo da arte é preparar uma pessoa para a morte, arar e cultivar sua alma, tornando-a capaz de voltar-se para o bem” (7). Percurso esse que para Dostoiévski, segundo Jacqueline, amiga e companheira do LabHum, “pressupõe o reconhecimento do mal dentro de nós mesmos”.

E foi nesse reconhecimento do mal em mim que vivi Os Demônios no Laboratório de Humanidades. É duro defender sozinho o indefensável. Todos me diziam que Nikolai Stavróguin era a própria encarnação demoníaca do vazio, do tédio, do Nada. Em contraposição eu argumentava que Nikolai havia sentido toda a profundidade do seu crime, que ele mesmo queria se perdoar e por culpa andava à procura de humilhações e sofrimentos desmedidos. Tudo em vão. Nikolai começou a ruir quando sozinho me dei conta de que ele havia, ao mesmo tempo, plantado em Chátov a crença em Deus, enquanto em Kiríllov cultivara a semente do suicídio. Nikolai não tem coração! Nikolai é perverso! Afinal foram tantas as atrocidades! Estuprou a pobre menininha. Deixou matar a coitada da coxa. Enfim, capitulei diante de todos, embora em meu coração persistisse - e ainda persista - um estranho sentimento que luta por reconhecimento. Eu não sei o que é. Só sei que quando eu declarei “tudo bem, Nikolai é um demônio”, o Dante disse “NÃO, veja bem Licurgo, Nikolai é humano”. E essa advertência fez toda diferença, pois como definir taxativamente um Homem? Como ser Homem e ser Absoluto? A radical experiência humana é singular e vertical. Emocionado, entusiasmado, só me lembro que encerrei minha participação naquele dia citando os versos de Walt Whitman:

Me contradigo?
Tudo bem, então... me contradigo:
Sou vasto... contenho multidões. (8)

E essa multidão que habita em mim sabe agora reconhecer o mal. Sabe até contemplá-lo em sua beleza. E na beleza que nele se encerra, ainda que por caminhos tortuosos, ver-se revelada a transcendência. Em Os Demônios Dostoiévski diz que “a verdade verdadeira é sempre inverossímil” e que “para tornar a verdade mais verossímil, precisamos necessariamente adicionar-lhe a mentira”. Talvez salpicando mentiras, acredito que pela exacerbação do mal também se chega a Deus, pois quando por fim optamos entre realizar a maldade ou deixá-la à espreita, nessa hora, ao exercer a liberdade na opção pelo bem, cumpre-se o destino sagrado do homem.

Completamente insuficiente para continuar, cito um trecho essencial no fechamento desse meu primeiro pequeno e intenso ciclo russo. Porque não tive tempo e porque não quis influenciar minha experiência de Dostoiévski, li somente na véspera do encerramento das discussões no Laboratório de Humanidades a dissertação de Mestrado da Jacqueline sobre Os Demônios:
A negação do mal para Dostoiévski nega a progenitura do homem, nega a profundeza de sua verdadeira natureza, e ainda, nega a liberdade do espírito humano e a responsabilidade que lhe é inerente. O mal é sinal que existe no homem uma profundeza interna ligada à personalidade; só a personalidade pode criar o mal e responder por ele, uma força impessoal não seria capaz de ser responsável pelo mal. A concepção do mal e da liberdade em Dostoiévski está ligada à sua concepção de personalidade. Negar a personalidade é também negar o mal, se existe no homem a personalidade em profundeza, então o mal tem fonte interior e não pode ser resultado de circunstâncias externas. Convém ao homem, por sua filiação divina, pensar que o caminho do sofrimento resgata e consome o mal. Porque o sofrimento no homem é justamente o indício de usa profundeza.

Dostoiévski não tratou o mal em suas obras do ponto de vista da lei. Ele buscou reconhecer o mal. Reconhecimento como um caminho que o homem deve seguir, seu destino trágico, destino de sua liberdade, e experiência suscetível de levá-lo ao conhecimento de si mesmo. Experiência interior que acaba por demonstrar o Nada do mal, e que no decorrer desta experiência o confunde e o consome. Pois não se expia o mal por um castigo exterior, mas pelas consequências inelutáveis que traz em si. (9)
Então, uma vez embebido em tinta russa, carregado de luz e sombra, certeza e perplexidade, numa veemência quase espiritual, assumo e realizo no entusiasmo e no exagero de minha alma a personalidade que sou. Um dia a Jacqueline falou no LabHum que esse meu jeito nervoso, e os meus olhos inquietos, me faziam parecer um personagem dostoievskiano. Depois me disse que sentia que eu estava “no método”. Era um elogio, eu sabia, embora eu não pudesse naquele momento compreendê-lo. Até que por sua generosidade ela me fez conhecer o escritor grego Nikos Kazantzakis:
Sentia que era este o dever, o meu único dever: reconciliar os irreconciliáveis, arrancar do fundo de mim mesmo as espessas trevas ancestrais para delas fazer luz, na medida das minhas possibilidades. Não é este o método de Deus? Não é este o método que nós temos, portanto, o dever de aplicar, seguindo os seus passos? A nossa vida é um relâmpago muito breve, mas temos sempre tempo. (10)
“Reconciliar os irreconciliáveis”. “Arrancar do fundo de mim mesmo as espessas trevas ancestrais”. E não é essa mesma a minha busca do Infinito? Não é esse o sabor agridoce que tanto tenho perseguido? Agora sei que burilar essa minha alma russa tem sido fundamental na “concretização” do gosto do infinito em mim.

Quanto a Tolstoi e “A Morte de Ivan Ilitch”, nem tenho o que dizer. A experiência foi tão marcante que só consegui traduzi-la nos dois textos que eu já publiquei aqui: “Ivan Ilitch não leu O Livro dos Prazeres” e “Hei de ser indecente”, além dos e-mails que mandei para os meus amigos, intimando-os a ler Tolstói imediatamente. De resto, nunca nos esqueçamos que “nossa vida é um relâmpago muito breve, mas temos sempre tempo”.


Bibliografia:

Dostoiévski, F. Duas Narrativas Fantásticas: A dócil e O Sonho de um Homem Ridículo. Tradução de Vadim Nikitin. São Paulo: Ed. 34, 2003.

Dostoiévski, F. Os Demônios. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. 34, 2004.

Tolstoi, L. A Morte de Ivan Ilitch. Tradução de Boris Schnaiderman. São Paulo: Ed. 34: 2006.


Notas:

(1) Versos de Walt Whitman. Poema Vida. Publicado nesse blog no post “Desvios e Estridências”.

(2) Miguel Sanches Neto. É dele a citação, mas não sei em que obra. Li a frase, e anotei, ao acaso, na Livraria Cultura.

(3) Leiris, M. Espelho da Tauromaquia. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 38. [A frase referida no texto é uma referência ao conceito estético que norteava a obra do poeta Charles Baudelaire].

(4) Lacerda, R. Fiódor Dostoiévski. São Paulo: Dueto Editorial, 2008 - (Entre Clássicos: 7).

(5) Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 21.

(6) Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 22.

(7) Tarkovskiaei, A. A. Esculpir o Tempo: Tarkovski. Apud: Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 22.

(8) Whitman, W. Folhas de Relva. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2008.

(9) Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 108.

(10) Kazantzakis, N. Carta a Greco. Tradução de Armando Pereira da Silva. Lisboa: Editora Ulisseia, 1961. (Documento do Tempo Presente, nº 40).

quarta-feira, 26 de maio de 2010

A Cultura Contemporânea na Clínica de Bento XVI: as patologias da modernidade e a terapêutica da humanização.

[1]

Dante Marcello Claramonte Gallian

Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde (CeHFi) da UNIFESP.

Bento XVI e a Humanização

Já faz algum tempo que um dos temas que mais me tem ocupado, enquanto pesquisador e professor universitário, é o da humanização. Sendo historiador de formação e trabalhando há mais de uma década numa escola de Medicina, acabei me defrontando com esta questão candente que, formulada de maneira especial na área da saúde, começa se projetar, inevitavelmente, para todos os campos do saber, apresentando-se como um dos grandes desafios da cultura contemporânea.

Ambientado, por um lado, no contexto problemático dos controversos programas de humanização e incitado, por outro, por experiências interpelativas a partir da leitura, fruição e reflexão de clássicos da literatura com estudantes e profissionais da saúde, fui me dando conta de como as humanidades (a filosofia, as artes, a literatura...) acabam por se revelar um meio privilegiado e eficaz de humanização. E este, portanto, tem sido, nos últimos anos, o meu objeto de experiência e investigação: as humanidades, a formação humanística e a humanização no contexto da universidade, particularmente no campo da saúde.

Ao receber o convite da UNISAL para falar sobre “Bento XVI e a Cultura Contemporânea” em seu Simpósio de Teologia, aceitei-o, confesso, com desculpável oportunismo. Intuía, a partir de experiências anteriores com o magistério do papa Bento XVI, que talvez, uma leitura mais profunda, abrangente e sistemática de seus textos, seria de muito proveito para minha reflexão pessoal e para o meu projeto de pesquisa. E efetivamente: não só intuí corretamente, como esta nova experiência acabou por superar minhas expectativas. A leitura dos documentos do magistério de Bento XVI sobre a questão da cultura contemporânea, não apenas veio ao encontro das reflexões teóricas e experiências empíricas que venho desenvolvendo (fortalecendo-as portanto), como também abriu novos horizontes de reflexão, contribuindo enormemente para uma ampliação do escopo de minha pesquisa. Neste sentido quero, antes de tudo, agradecer a grande oportunidade proporcionada por este providencial convite.

Pode parecer estranho, à primeira vista, como um conjunto de documentos que configuram o magistério de um papa pode não apenas inspirar, mas também contribuir de forma efetiva para o desenvolvimento de um projeto de pesquisa acadêmico sobre a humanização na área da saúde. Tal estranheza, entretanto, se efetivamente existe, deve-se a um preconceito típico dos ambientes acadêmicos modernos e que se explica justamente por um fenômeno descrito pelo próprio Bento XVI: o estreitamento da razão[2] – noção que retomarei mais adiante e que consiste, sumariamente, na limitação auto-decretada da razão, fundamentada “numa síntese entre platonismo (cartesianismo) e empirismo, que o sucesso técnico confirmou.”[3] Constituindo-se no próprio fundamento do pensamento científico moderno, tal perspectiva de razão, associada com outros elementos característicos do ethos acadêmico atual, rejeita categoricamente todo tipo de “conhecimento” que não se adeque aos seus pressupostos teóricos e, principalmente, aos modismos intelectuais do momento. Assim, idéias advindas de um universo não cartesiano e não empirista (ainda que a própria academia, em alguns âmbitos, considere-se pós-cartesiana e anti-positivista) e, principalmente, procedentes de uma mente religiosa (e, pior ainda, de um papa!) são, de acordo com esta lógica da universidade moderna, indiscriminadamente desqualificados. E é, portanto, esta mesma postura auto-limitada que vigora no contexto acadêmico que acaba por asfixiá-lo e desumanizá-lo, fazendo com que a universidade contemporânea perca, muitas vezes, a oportunidade de contribuir de forma efetiva para o desafio da humanização.

O magistério de Bento XVI, além de abrir perspectivas mais amplas sobre a condição humana a partir da experiência do religioso (dimensão inegável desta mesma condição humana), apresenta uma abordagem significativa para a discussão da cultura contemporânea, por se assentar numa base filosófica extremamente séria e sólida; fruto do amadurecimento de um professor de filosofia de reconhecida competência, considerado um dos maiores pensadores vivos da atualidade, num sentido amplo, que transcende o âmbito teológico-religioso.

Diante do desafio que se descortina hoje, o de reestruturar a universidade e a atividade acadêmica frente à ameaça implacável da desumanização da cultura e do homem, recorrer a uma perspectiva que venha no sentido de ampliar o escopo e a lógica da razão apresenta-se como algo oportuno e desejável. Neste sentido, o pensamento de Bento XVI, através também de seu “magistério” configura-se como uma contribuição nada desprezível. E o mergulho sério e despreconceituoso neste conjunto de documentos confirmam tal noção.

O Pensamento “Clínico” de Bento XVI e o Diagnóstico da Desumanização

Como sistematizar o pensamento de Bento XVI? Sugiro uma lógica que se poderia qualificar de clínica. A prática médica estabeleceu desde suas origens um itinerário composto de várias etapas. Como excelente médico, Bento XVI, seguindo um itinerário eminentemente iátrico, debruça-se sobre o mundo atual, que sofre de um mal cultural, analisa a sintomatologia (a identificação dos sinais e sintomas patológicos da nossa cultura), diagnostica as causas da patologia e, por fim, prescreve uma intervenção terapêutica, capaz de promover a saúde - que, no caso da cultura, seria a sua humanização.

Em diversas intervenções e discursos, Bento XVI, ao se referir às manifestações mais marcantes da cultura contemporânea, o faz, precisamente, como sintomas de um contexto patológico. Concomitantemente com os inegáveis progressos no campo científico-tecnológico e no econômico-social, o homem da civilização pós-moderna experimenta, paradoxalmente, um sentimento de solidão e abandono[4], característico do nosso mundo globalizado. Se, por um lado, as desigualdades e a exploração econômica explicam a desolação de milhões, por outro, a carência de valores e sentido de vida acabam por lançar outra importante parcela da humanidade na “angústia que conduz ao desespero.”[5]

No texto do discurso que pretendia ler durante sua visita à Universidade “La Sapienza” de Roma, em janeiro de 2008[6], Bento XVI, citando Santo Agostinho, retoma uma idéia que traduz, de maneira emblemática, um dos sintomas mais característicos de nosso contexto patológico: a reciprocidade entre scientia e tristitia – entre ciência e tristeza. O simples saber, dizia o bispo de Hipona, deixa-nos tristes. “E realmente – completa o papa – quem se limita a ver e apreender tudo aquilo que acontece no mundo, acaba por ficar triste.”[7]

Ao instrumentalizar o conhecimento e abrir mão da busca da verdade, das questões essenciais da existência humana, o homem moderno esvaziou a ciência do seu conteúdo fundamental e, se por um lado, isso o permitiu ir muito longe do ponto de vista das conquistas técnicas, por outro, o afastou tremendamente de si mesmo, levando-o a uma “zona de dessemelhança” – a regio dissimilitudinis de Santo Agostinho[8]. Como explica Bento XVI:

Agostinho tomara esta palavra da filosofia platônica para caracterizar o seu estado interior antes da conversão (cf. Confissões, VII 10.16): o homem, que é criado à semelhança de Deus, em conseqüência do seu abandono de Deus precipita na "zona da dessemelhança" - num afastamento de Deus tal que já não O reflete mais, tornando-se assim dessemelhante não apenas de Deus, mas também de si próprio, do verdadeiro ser homem.[9]

Dessemelhante a si mesmo, o homem acaba por perder aquilo que lhe é próprio. Nas palavras do próprio papa: “a perda daquilo que é humano no homem.”[10] Chegamos pois, ao diagnóstico da patologia que acomete o homem contemporâneo: a desumanização.

Em certa medida, as causas desta patologia já foram sumariamente apontadas na própria caracterização de seus sintomas: a tristeza, por exemplo, como resultado de uma ciência desvinculada da verdade; o desespero, como resultado da precipitação na “zona de dessemelhança”... Para se chegar, porém, a um diagnóstico mais completo, necessário para que se delineie um prognóstico coerente e um tratamento eficaz é preciso, segundo Bento XVI, explorar suas causas mais profundas, investigando suas raízes históricas. Compreendendo a desumanização do homem contemporâneo como uma patologia característica da Modernidade, fruto, na verdade, da sua crise, nada mais adequado, portanto, do que iniciar esta abordagem a partir “de um estudo compreensivo” sobre esta mesma crise:

Nos últimos séculos, a cultura européia tem sido poderosamente condicionada pela noção de modernidade. Contudo, a presente crise tem menos a ver com a insistência da própria modernidade a respeito da centralidade do homem e das suas solicitudes, do que com os problemas levantados por um "humanismo" que reivindica a construção de um regnum hominis desvinculado do seu necessário fundamento ontológico. Uma falsa dicotomia entre o teísmo e o autêntico humanismo, impelido ao extremo de criar um conflito irreconciliável entre a lei divina e a liberdade humana, tem levado a uma situação em que a humanidade, em virtude de todos os seus progressos econômicos e técnicos, se sente profundamente ameaçada. Como afirmava o meu Predecessor, Papa João Paulo II, temos necessidade de nos interrogarmos: "se o homem, enquanto homem, no contexto deste progresso, se torna verdadeiramente melhor, isto é, mais amadurecido espiritualmente, mais consciente da dignidade da sua humanidade, mais responsável, mais aberto aos outros" (Redemptor hominis, 15). O antropocentrismo que caracteriza a modernidade nunca pode desvincular-se do reconhecimento de toda a verdade acerca do homem, o que inclui também a sua vocação transcendente.[11]

A crise da Modernidade, realidade plenamente perceptível na contemporaneidade através da derrocada das utopias, da desesperança e da própria desumanização da cultura, só pode ser efetivamente compreendida quando se reconhece, como bem aponta Bento XVI, o equívoco antropológico que se delineou nas suas raízes, nas suas origens. O antropocentrismo moderno, ao reduzir o homem como medida suficiente de si mesmo e, de maneira particular, na dimensão da sua razão (no sentido também moderno do termo), armou como que uma armadilha para si próprio, fechando as portas para outras dimensões da existência e do entendimento, e estabeleceu assim, sem querer, os fundamentos da desumanização que hoje se vive.

Tal realidade patológica pode ser percebida de forma emblemática, segundo Bento XVI, naquilo que ele chama de auto-limitação moderna do conceito de razão:

No fundo, temos a auto-limitação moderna da razão, com a sua expressão clássica nas «críticas» de Kant, mas ulteriormente radicalizada pelo pensamento das ciências naturais. Em poucas palavras, este conceito moderno da razão baseia-se numa síntese entre platonismo (cartesianismo) e empirismo, que o sucesso técnico confirmou. Por um lado, pressupõe-se a estrutura matemática da matéria, por assim dizer a sua racionalidade intrínseca, que torna possível compreendê-la e usá-la na sua eficácia operacional: este pressuposto básico é, por assim dizer, o elemento platônico no conceito moderno da natureza. Por outro lado, trata-se da utilização funcional da natureza para as nossas finalidades, onde só a possibilidade de controlar verdade ou falsidade através da experiência é que fornece a certeza decisiva. O peso entre os dois pólos pode, segundo as circunstâncias, oscilar para um lado ou outro.[12]

Assim, apenas a certeza que deriva da sinergia entre matemática e experiência nos permite falar de cientificidade. “Tudo o que pretenda ser ciência – continua o papa – deve conformar-se com este critério.”[13] E, por outro lado, tudo o que transcende esta possibilidade de aferição “científica” estaria portanto no campo do a-científico ou pré-científico, tal como o problema de Deus e das questões existenciais e religiosas do homem. Ora, tal auto-limitação do conceito de razão e de ciência determina a larga um estado de cisão que acaba por redundar no desvirtuamento da razão em racionalismo e da ciência em cientificismo, principais agentes patológicos na crise desumanizadora que caracteriza a pós-modernidade. Em sua busca por construir um humanismo efetivamente autônomo, tendo como fundamento apenas a si mesmo e sua própria razão, o homem moderno, concomitantemente com as grandes conquistas científico-tecnológicas, próprias de quem se estabelece como dominador da natureza, desencadeou uma dinâmica patológica profundamente desumanizadora que hoje o ameaça e o desafia.

A Terapêutica Humanizadora

Estabelecido o diagnóstico, o raciocínio clínico de Bento XVI nos leva ao passo seguinte: a terapêutica. Tendo identificado as causas da patologia na crise da modernidade, ou seja, na própria dinâmica auto-centrada e auto-limitada de seus pressupostos antropológicos e de seus conceitos de razão e ciência, o papa, com coerência clínica, depreende que a ação terapêutica está na inversão da dinâmica patológica; ou seja, frente à auto-limitação e à auto-centralização, a abertura, a busca por ir ao encontro do outro, a descentralização. Concretamente, o remédio receitado pelo papa é o da ampliação ou alargamento do conceito de razão.

Em seu célebre discurso na Universidade de Regensburg, onde este tema aparece como elemento central, Bento XVI colocava:

Portanto, a intenção não é retirada, nem crítica negativa; pelo contrário, trata-se de um alargamento do nosso conceito de razão e do seu uso. Porque, juntamente com toda a alegria face às possibilidades do homem, vemos também as ameaças que resultam destas mesmas possibilidades e devemos perguntar-nos como poderemos dominá-las. Consegui-lo-emos apenas se razão e fé voltarem a estar unidas duma forma nova; se superarmos a limitação autodecretada da razão ao que é verificável na experiência, e lhe abrirmos de novo toda a sua amplitude.[14]

Um ano mais tarde, no discurso proferido aos participantes do Primeiro Encontro Europeu de Professores Universitários, intitulado “Um novo humanismo para a Europa. O papel das universidades”, Bento XVI retoma esta mesma noção terapêutica, afirmando:

Uma segunda questão está relacionada com a abertura da compreensão que temos acerca da racionalidade. O correto entendimento dos desafios apresentados pela cultura contemporânea e a formulação de respostas significativas a tais desafios devem aproximar-se de maneira crítica das tentativas insuficientes e, em última análise, irracionais de limitar a finalidade da razão. Pelo contrário, o conceito de razão tem necessidade de ser "ampliado", para ser capaz de explorar e de incluir os aspectos da realidade que vão além daquilo que é puramente empírico. Isto há de permitir uma abordagem mais frutuosa e complementar da relação entre fé e razão. O nascimento das universidades européias foi fomentado pela convicção de que a fé e a razão devem cooperar na busca da verdade, cada uma respeitando a natureza e a autonomia legítima da outra, mas trabalhando em conjunto, harmoniosa e criativamente, em vista da realização de cada pessoa humana na verdade e no amor.[15]

Na prática, a aplicação da terapêutica do alargamento ou ampliação do conceito de razão exige o desenvolvimento de uma visão interdisciplinar do conhecimento, que não apenas busque harmonizar as diversas ciências que se apresentam no cenário atual, como também e principalmente, que incorpore outras dimensões da experiência humana, como as da e da sabedoria.

O homem - discursava o papa na Pontifícia Academia das Ciências – não pode depositar na ciência e na tecnologia uma confiança tão radical e incondicional, a ponto de acreditar que o progresso científico e tecnológico consegue explicar tudo e suprir completamente todas as suas necessidades existenciais e espirituais. A ciência não pode substituir a filosofia e a revelação, oferecendo uma resposta exaustiva às interrogações mais radicais do homem: perguntas a respeito do significado da vida e da morte, dos valores últimos e da natureza do próprio progresso. Por este motivo, depois de ter reconhecido os benefícios adquiridos pelos progressos científicos, o Concílio Vaticano II recordou que "os métodos de investigação próprios destas ciências são erroneamente assumidos como regra suprema da investigação de toda a verdade", e acrescentou que "pode temer-se que o homem, demasiado orgulhoso das descobertas atuais, venha a pensar que se basta a si mesmo e que não precisa de procurar valores mais altos" (Ibid., n. 57).[16]

A finalidade da razão humana não se restringe em compreender o funcionamento ou mecanismo da natureza para que dela possa o homem se apoderar e tirar-lhe proveito. A razão deve estar aberta e voltada para “procurar valores mais altos”, para ir em busca da verdade, das questões essenciais da existência humana e, para tanto, deve lançar mão da teologia, da filosofia e das humanidades (das artes, da literatura) não apenas como disciplinas auxiliares, mas como fontes de efetivo conhecimento. Conhecimento este que não se limita à dimensão teórica, mas que se desdobra em sabedoria, em “saber-viver”.

É nesse âmbito, portanto, que se percebe como a ampliação ou alargamento do exercício da razão tem um efeito efetivamente terapêutico neste contexto: ela configura um movimento humanizador. “A pesquisa científica – colocava o papa em discurso na Universidade de Pávia – tende para o conhecimento, enquanto a pessoa precisa também da sabedoria, isto é, daquela ciência que se expressa no ‘saber-viver’.”[17] Ampliar não apenas o conceito mas o próprio movimento do pensar acaba por desencadear um processo de ampliação do próprio ser humano, não apenas do ponto de vista intelectual, mas antes integral, envolvendo a inteligência, o coração e a vontade. Eis o Novo Humanismo que estimula e orienta esta terapêutica humanizadora que propõe Bento XVI.

Espaço e Agentes Terapêuticos

Na dinâmica do raciocínio iátrico clássico, há uma associação direta e necessária entre terapêutica e dieta. E esta última não se limitava, como hoje se pensa, em simples disciplina alimentar. Na lógica hipocrática, fundamento do pensamento médico ocidental, a dieta abarca não apenas o âmbito da nutrição, mas tudo o que se relaciona com o viver humano: o ar que se respira, o lugar em que se habita, as idéias, pensamentos e costumes que ocupam e orientam a mente. Neste sentido, a terapêutica exige, obrigatoriamente, um tempo e um espaço convenientes, assim como agentes adequados para se efetivar.

Projetando, mais uma vez, este raciocínio para o pensamento e magistério de Bento XVI, verifica-se que na terapêutica humanizadora por ele proposta, o espaço conveniente e mesmo privilegiado para a sua efetivação é, sem dúvida, o espaço da Universidade.

Penso que se possa afirmar – colocava o papa no texto do discurso que seria proferido na Universidade de Roma – que a verdadeira e íntima origem da universidade esteja na sede de conhecimento, que é própria do homem. Este quer saber o que é tudo aquilo que o circunda. Quer a verdade. Neste sentido, podemos ver o questionar-se de Sócrates como o impulso do qual nasceu a universidade ocidental.[18]

Impulsionado por esta “sede de conhecimento” o homem que instintivamente procura “ampliar o seu conceito de razão”, acaba por querer abarcar o próprio universo, através do caminho do questionamento, da crítica, da pesquisa, do debate. Eis, segundo Bento XVI, o espírito que plasmou a universitas studiorum da Idade Média e que, em grande medida, estabeleceu as bases do autêntico humanismo, promotor de uma efetiva via de humanização.

Se é verdade que as grandes universidades, que na Idade Média nasciam em toda a Europa, tendiam com confiança para o ideal da síntese de todos os saberes, isto estava sempre ao serviço de uma autêntica humanitas, ou seja, de uma perfeição do indivíduo no interior da unidade de uma sociedade bem ordenada.[19]

Afetadas de maneira especial pela visão moderna de razão e ciência – visão esta que, paradoxalmente, elas próprias ajudaram a gestar – as universidades, em grande medida, foram perdendo esta feição humanística, para se tornarem muitas vezes apenas centros de formação profissional e de desenvolvimento de pesquisa científica. Esvaziadas de seu conteúdo essencial, as universidades modernas apresentam-se assim como fomentadoras da própria patologia da desumanização. Como denuncia Bento XVI:

Não é porventura verdade que com frequência hoje no mundo a prática da razão e a pesquisa acadêmica são obrigadas — de modo subtil e por vezes nem tanto subtil — a resignar-se às pressões de grupos de interesses ideológicos e à ilusão de objetivos utilitaristas a curto prazo ou apenas pragmáticos? Que poderia acontecer, se a nossa cultura se tivesse que construir a si mesma unicamente sobre argumentos que estão na moda, com escassa referência a uma tradição intelectual histórica genuína ou sobre as convicções que são promovidas com muito ruído e fortemente financiadas?[20]

Neste sentido, para que a universidade volte a ser o espaço adequado e privilegiado da promoção do humano, é preciso que ela se reencontre com sua vocação histórica, abrindo-se novamente para o universal, não apenas numa perspectiva meramente física ou científica, mas também e principalmente na perspectiva metafísica e sapiencial. Recorrendo mais uma vez ao texto de Bento XVI:

Há que ser reconquistada a idéia de uma formação integral, baseada sobre a unidade do conhecimento radicado na verdade. Isto pode contrastar a tendência, tão evidente na sociedade contemporânea, para uma fragmentação do saber. Com o crescimento maciço da informação e da tecnologia nasce a tentação de separar a razão da busca da verdade. Mas a razão, quando é separada da orientação humana fundamental para a verdade, começa a perder a própria direção. Ela acaba por se tornar insensível sob a aparência de modéstia, quando se contenta com o que é puramente parcial ou provisório, ou sob a aparência de certeza, quando impõe a capitulação às exigências de quantos dão de maneira indiscriminada igual valor praticamente a tudo.[21]

A universidade deve, portanto, ser o espaço privilegiado que se abre e que se apresenta como lugar do exercício da reflexão, do questionamento, da procura da verdade; como lugar que acolhe e que, de certa forma, corresponde a essa sede, a essa ânsia de conhecimento da verdade, própria do homem e que se manifesta com especial força no jovem.

Deve ser assim também hoje: quando a compreensão da plenitude e unidade da verdade é despertada nos jovens, eles sentem o prazer de descobrir que a pergunta sobre o que eles podem conhecer lhes abre o horizonte da grande aventura sobre como devem ser e sobre o que devem realizar.[22]

Assim, a universidade como espaço de humanização, de construção de um Novo Humanismo, deve ser o espaço em que as questões essenciais da existência humana, como o viver bem, o morrer, o bem, o mal, o belo, estejam colocadas e que possam ser racionalmente desenvolvidas, com rigor lógico e seriedade, sem preconceitos racionalistas e cientificistas. Pois, como lembra Bento XVI, “desde os tempos de Platão, a educação não consiste no mero acúmulo de conhecimentos ou de habilidades, mas numa paideia, uma formação humana nas riquezas de uma tradição intelectual finalizada a uma vida virtuosa.”[23]

Em suma, para que se cumpra o seu efetivo papel de espaço terapêutico de humanização, é preciso que a universidade se constitua em um verdadeiro laboratório de cultura, em que professores e estudantes trabalhem em conjunto, “investigando temas de particular importância para a sociedade, recorrendo a métodos interdisciplinares e contando com a colaboração dos teólogos.”[24] quest os professores e os estudantes trabalhem em conjunto, investigando

Por fim, complementando o quadro “clínico” apresentado por Bento XVI em seu recente magistério sobre a questão da cultura contemporânea e o desafio da sua humanização, aparece, como elemento essencial o agente terapêutico. Havendo delineado o ambiente, o espaço adequado e privilegiado para a promoção da humanização, a Universidade, o papa indica também o agente privilegiado que deve atuar no interior deste ambiente: o educador. Mas aqui, tal como se mostrou acima no caso da Universidade (em que um reencontro com sua vocação histórica se faz indispensável), observa-se também a necessidade de se especificar as qualidades e o espírito que deve animar este agente privilegiado. E aqui, novamente, Bento XVI recorre a Santo Agostinho, como figura referencial e modelar:

Santo Agostinho era um homem animado por um desejo incansável de encontrar a verdade, de encontrar o que é a vida, de saber como viver, de conhecer o homem. (...) Assim a fé em Cristo não pôs fim à sua filosofia, à sua audácia intelectual, mas ao contrário, estimulou-o ulteriormente a procurar as profundezas do ser homem e a ajudar os outros a viver bem, a encontrar a vida, a arte de viver. Isto era para ele a filosofia: saber viver com toda a razão, com toda profundidade do nosso pensamento, da nossa vontade, e deixar-se guiar pelo caminho da verdade, que é um caminho de coragem, de humildade, de purificação permanente.[25]

Aliando a perspectiva da pesquisa rigorosa, do raciocínio amplo e comprometido com a verdade, com a busca por “encontrar a vida, a arte de viver” e, ao mesmo tempo, com o desejo de “ajudar os outros a viver bem”, Santo Agostinho apresenta-se como figura emblemática deste agente terapêutico indispensável para a humanização da cultura. Ele, na verdade, encarna a própria vivência da caridade intelectual, virtude fundamental que qualifica e deve animar este agente terapêutico humanizador, o intelectual-educador do Novo Humanismo que propõe Bento XVI.

A caridade intelectual é o ingrediente facilitador e propiciador do caminho para aqueles que têm fome e sede de conhecimento, de verdade e de humanização.

Estes perigosos desenvolvimentos põem em evidência a urgência particular daquilo a que poderíamos chamar "caridade intelectual". Este aspecto da caridade exige que o educador reconheça que a profunda responsabilidade de guiar os jovens à verdade é unicamente um ato de amor. Na realidade, a dignidade da educação reside na promoção da verdadeira perfeição e a alegria de quantos devem ser guiados. Na prática, a "caridade intelectual" apóia a essencial unidade do conhecimento contra a fragmentação que deriva quando a razão está separada da perseguição da verdade. Isto guia os jovens para a profunda satisfação de exercer a liberdade em relação à verdade, e leva a formular a relação entre a fé e os vários aspectos da vida familiar e civil. Quando a paixão pela plenitude e pela unidade da verdade for despertada, os jovens certamente apreciarão a descoberta que a questão sobre o que eles podem conhecer os abre para a vasta aventura do que eles deveriam fazer. Então eles experimentarão "em quem" e "no que" é possível esperar e sentir-se-ão inspirados a dar a sua contribuição à sociedade de uma forma que gera esperança nos outros.[26]

Dirigindo-se primeiramente ao homem de fé, ao cristão católico, e tendo como foco a universidade católica, o magistério do papa Bento XVI apresenta-se, entretanto, como um convite aberto a todos aqueles – educadores, intelectuais, acadêmicos – que reconhecendo a feição patológica que apresenta a cultura contemporânea, vislumbram na ampliação do conceito de razão e na caridade intelectual um “recurso terapêutico” válido e eficiente na busca pela saúde da humanidade. Neste sentido, o magistério de Bento XVI sobre a cultura contemporânea traz subsídios valiosos para todo aquele que se preocupa com o tema da humanização.



[1] Texto elaborado a partir da fala realizada no Simpósio de Teologia da UNISAL no dia 19 de março de 2010, cujo título original era: “Bento XVI e a Cultura Contemporânea: desafios e esperanças para a cultura cristã”. Agradeço especialmente a atenta e inspiradora cooperação do Prof. Francisco Catão, que revisou os originais e sugeriu complementações muito pertinentes.

[2] Bento XVI. Fé, Razão e Universidade: recordações e reflexões. Discurso do Santo Padre na Aula Magna da Universidade de Regensburg durante Encontro com os Representantes das Ciências em 12 de setembro de 2006. Acessado pela web: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2006/september/documents/hf_ben-xvi_spe_20060912_university-regensburg_po.html

[3] Idem.

[4] Cf. Encontro com o mundo da cultura no Collège des Bernardins. Viagem Apostólica à França por Ocasião do 150º Aniversário das Aparições de Lourdes. Paris, 12 de setembro de 2008. Acessível em http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2008/september/documents/hf_ben-xvi_spe_20080912_parigi-cultura_po.html

[5] Bento XVI, Discurso durante visita à Pontifícia Universidade Gregoriana. Roma, 3 de novembro de 2006. Acessível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2006/november/documents/hf_ben-xvi_spe_20061103_gregoriana_po.html

[6] Acessível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2008/january/documents/hf_ben-xvi_spe_20080117_la-sapienza_po.html

Previsto para ocorrer no dia 17 de janeiro de 2008, o encontro na referida universidade foi, sem embargo, cancelado pelos próprios responsáveis pelo convite.

[7] Idem.

[8] Mais uma vez o papa se apóia num conceito agostiniano.

[9] Encontro com o mundo da cultura no Collège des Bernardins. Op. Cit.

[10] Discurso aos participantes na Assembléia Plenária da Pontifícia Academia das Ciências. Vaticano, 6 de novembro de 2006. Acessível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2006/november/documents/hf_ben-xvi_spe_20061106_academy-sciences_po.html

[11] Discurso aos participantes no 1º Encontro Europeu de Professores Universitários. Vaticano, 23 de junho de 2007. Acessível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2007/june/documents/hf_ben-xvi_spe_20070623_european-univ_po.html

[12] Bento XVI. Fé, Razão e Universidade: recordações e reflexões. Discurso do Santo Padre na Aula Magna da Universidade de Regensburg durante Encontro com os Representantes das Ciências em 12 de setembro de 2006. Op. Cit.

[13] Idem.

[14] Idem

[15] Discurso aos participantes no 1º Encontro Europeu de Professores Universitários. Vaticano, 23 de junho de 2007. Op.cit.

[16] Bento XVI, Discurso aos participantes na Assembléia Plenária da Pontifícia Academia das Ciências, 6 de novembro de 2006. Op. Cit.

[17] Bento XVI, Discurso durante encontro com a comunidade da Universidade de Pavia. 22 de abril de 2007. Acessível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2007/april/documents/hf_ben-xvi_spe_20070422_university-pavia_po.html

[18] Op. Cit.

[19] Bento XVI, Discurso no encontro com o mundo acadêmico no salão de Vladislav do Castelo de Praga. 27 de setembro de 2009. Acessível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2009/september/documents/hf_ben-xvi_spe_20090927_mondo-accademico_po.html

[20] Idem.

[21] Idem

[22] Idem

[23] Idem

[24] 1º Encontro Europeu de Professores Universitários. Op. cit.

[25] Discurso na Universidade de Pavia. Op. cit.

[26] Discurso na Sede da Organização das Nações Unidas (ONU) para os Educadores Católicos. Nova York, 17 de abril de 2007. Acessível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2008/april/documents/hf_ben-xvi_spe_20080417_cath-univ-washington_po.html