terça-feira, 21 de dezembro de 2010
Reflexões sobre o livro O Retrato de Dorian Gray
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
HUMANIDADES E HUMANIZAÇÃO EM SAÚDE: Ciclo de Encontros de Estudo e Discussão
É com muita satisfação que participamos a todos a abertura do GRUPO DE ESTUDOS HUMANIDADES E HUMANIZAÇÃO EM SAÚDE: Ciclo de Encontros de Estudo e Discussão com início no 1º Semestre de 2011. Esta iniciativa vem contemplar a necessidade de problematizarmos os pressupostos teórico-filosóficos que fundamentam a linha de pesquisa Humanidades e Humanização em Saúde do Grupo de Pesquisa Humanidades Ciências e Saúde (CNPq).
Nível: Pós-Graduação
Público Alvo: Alunos de todos os Programas da UNIFESP
Professor Responsável: Dante Marcello Claramonte Gallian (Diretor do CeHFi)
Professora Convidada: Jacqueline Sakamoto (Pesquisadora do CeHFi e Doutoranda da Saúde Coletiva- EPM-UNIFESP)
Promoção: Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde (CeHFi)
Período: de 17 de fevereiro a 23 de junho
Horário: 5ªs feiras – 10h às 12h
Carga Horária: 60h (didática + atividade)
Créditos: 5 [Ao aluno de pós-graduação será exigido um relatório escrito sobre a experiência do Grupo de Estudos e comentários a respeito dos livros lidos. O certificado de presença e conceito será emitido pelo CeHFi, podendo ser apresentado à Pró-reitoria de pós-graduação para reconhecimento e atribuição de créditos].Vagas: 25
Local: Anfiteatro 2 da Pró-reitoria de Graduação: Rua Botucatu 740, 1o andar.
Inscrições: Secretaria do CeHFi. Botucatu 720. Fone: 5576-4258 (falar com D. Mercedes) mon.cehfi@epm.br
Objetivo Geral:
Promover a investigação, discussão e reflexão sobre a desumanização, compreendida como fenômeno “patológico” relacionado à Modernidade, decorrente de fundamentos antropológicos do humanismo da perfectibilidade, e relacionado a isto, sua perspectiva cientificista e tecnicista hegemônica.
Metodologia:
Seminários de discussão de textos pré-definidos
Avaliação:
Ao aluno de pós-graduação será exigido um relatório escrito sobre a experiência do Grupo de Estudos e comentários a respeito dos livros lidos. O certificado de presença e conceito será emitido pelo CeHFi, podendo ser apresentado à Pró-reitoria de pós-graduação para reconhecimento e atribuição de créditos.
Obras que serão discutidas (deverão estar previamente lidas):
GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA. Discurso sobre a Dignidade do Homem. Lisboa: Edições 70, 2008.
JOHN PASSMORE. A Perfectibilidade do Homem. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.
Maiores informações:
http://www.unifesp.br/centros/cehfi/curso_grupo_humanidades.htm
segunda-feira, 13 de dezembro de 2010
Laboratório de Humanidades 2011
Ciclo 2011 - 1º semestre
O Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde comunica a abertura de mais um ciclo do LABORATÓRIO DE HUMANIDADES (ano VI – Primeiro Semestre). O LabHum é um espaço aberto aos alunos de graduação, pós-graduação, docentes e funcionários da UNIFESP, assim como para estudantes de outras universidades.
A primeira obra a ser discutida será ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Livro I, “O Inferno”.
quarta-feira, 8 de dezembro de 2010
1ª leitura pra 2011 - Inferno - A Divina Comédia
O primeiro livro do Ciclo 2011 do Laboratório de Humanidades será A Divina Comédia, de
Dante Alighieri, mas apenas o primeiro livro, Inferno.
Já para quem preferir baixar em formato digital:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2203
E para saber mais sobre a obra acesse:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Divina_Com%C3%A9dia
Eu adorei a oportunidade de ler essa obra, sempre tive vontade mas não coragem!
terça-feira, 23 de novembro de 2010
Laboratório de Cinema
Visite o Blog http://projetonassal.wordpress.com/laboratorio-de-cinema/
sábado, 20 de novembro de 2010
LabHum - Uma turma especial
LabHum - Uma turma especial
Upload feito originalmente por Yuri Bittar
O Laboratório de Humanidades é um "curso" muito especial, com participantes incríveis! Aqui se aplica um conceito de ensino-aprendizagem totalmente inovador, usando a literatura e a discussão livre como fatores e uma formação humanista e humanizada. Fico muito feliz com os resultados! O LabHum é meu trabalho, minha pesquisa e onde encontro meus amigos!
Fotografia feita na última reunião, em 19/11/2010, coordenada pelo Prof. Dr. Rafael Ruiz
Agradeço a todos os presentes!
segunda-feira, 8 de novembro de 2010
Convite: I SEMINÁRIO DE HISTÓRIA ORAL E SAÚDE
25 de novembro de 2010
Inscrições: http://dpdphp.epm.br/acad/siex/index.htm
OBJETIVO PÚBLICO ALVO DATA E HORÁRIO LOCAL |
segunda-feira, 18 de outubro de 2010
Segundo Painel "Laboratório de Humanidades: uma experiência humanizadora possível."
Segundo Painel "Laboratório de Humanidades: uma experiência humanizadora possível."
Upload feito originalmente por LabHum - UFRPE
"Laboratório de Humanidades: uma experiência humanizadora possível." na Univ. Federal Rural de Pernambuco.
Veja esta e outras fotos no flickr do pessoal do LabHum da UFRPE.
O que transforma/reforma é o LabHum e não o Livro em si...
sábado, 16 de outubro de 2010
Minha Pequena Odisséia
Venci a minha guerra de Tróia. No embate fui meu próprio cavalo de pau. Arranquei das entranhas arsenais que eu nunca imaginara. Armaduras de ferro, lanças pontiagudas, venenos. Exército sanguinolento eu fui. Pilhei meus próprios recursos, violentei convicções, vivi na mixórdia. Não me chamo Ulisses, nem de Penélopes eu gosto. Não luto por Helenas, mas tenho nome espartano.
Espartano que sou inicio o caminho de volta. À minha Ítaca chegarei, ainda que outros dez anos se cumpram. Não me importa que me tentem com a imortalidade, não aceitarei me tornar desumano. Que me tentem vencer pelo esquecimento, não apagarei aquele que sou. Que sereias tentem me atirar no abismo dos mortos, não ouvirei as suas seduções. Certo, retornarei a minha casa, expulsarei invasores, reinarei até o fim.
Cada um de nós vive a sua Odisséia, o seu embate, a sua humanidade torta. Cada um tem o seu caos, a sua desordem, o seu perigo. Mas cada um também tem o seu retorno, a sua casa que lhe espera, o seu centro. E quando você estiver lá, mesmo que ninguém lhe dê a mão e o pretume da sua pele o transfigure, mesmo que você nunca tenha sabido de Helenas e Menelaus, Penélopes e Telémacos, não importa, mesmo assim você se reconhecerá Ulisses, pois a certeza que germina do caos e se fortalece no embate é heroicamente vida que floresce.
segunda-feira, 4 de outubro de 2010
Eu não quero ser Praskóvia / Viajando pela Terra dos homens
segunda-feira, 16 de agosto de 2010
Luz no pântano [1]
terça-feira, 15 de junho de 2010
Tinta Russa, e o Método de Deus
Participante do LabHum
O Sonho de um Homem Ridículo, Os Demônios, A Morte de Ivan Ilitch. Passei os últimos três meses assim, entre Fiódor Dostoiévski e Lev Tolstói. Roleta russa, montanha russa, com a alma russa. Ou seja, meio que ajoelhado, um tanto espremido, na porta estreita de regiões abissais.
Nunca uma literatura havia me pintado assim. Tanto que me sinto como folha de papel de arroz japonês, raro e caríssimo, colorido a grossas camadas de tinta negra e vermelha. E a imagem que se criou em mim é bela, ainda que a tintura escorra em sulcos verticais mais ou menos profundos, quase rasgando minha tecedura de papel. Não que eu me reconheça frágil, apenas um tanto raso para compreender certos matizes da alma humana: os russos querem me deixar cicatrizes, eu sei, querem se fazer indeléveis.
Ah, quantas paisagens nessa minha alma de papel de arroz! Quantas nuances de dúvida, contradição, perplexidade. Ora eu me sentindo ingênuo por não apreendê-las completamente. Ora vislumbrando nelas toda a verdade. Depois delirando com esses tipos russos meio demônios, meio anjos, cuja humanidade torta fere de sangue meu entendimento e meu coração.
Agora sei como Dostoiévski é implacável. Ele não facilita, não abranda mesmo. Temerário, joga cada vez mais tinta de corante negro. Mas também cuida de ir respingando vermelho, vermelho escuro, vermelho claro, e matizes de cinza. Por fim, essa paisagem inquieta, desconfortável, que de fato nada esclarece, mas entreabre as portas do infinito.
Quando acabei O Sonho de um Homem Ridículo disseram que tive uma reação epiléptica. Talvez epifânica. Foi uma reação sem palavras, inefável, impossível de ser elaborada instantânea e racionalmente. Mas tive a intuição de não explicá-la: eu seguiria com o próprio personagem os caminhos do coração. E não pensaria a vida ao invés de vivê-la. E não deixaria escorrer o sagrado entre os dedos da mão.
Foi assim que mais do que me sentir ridículo, eu quis ser ridículo. Porque a ridiculez daquele homem era o seu próprio coração querendo saltar pela boca. A sua ridiculez era eu arrebatado como ele na repentina certeza de que a razão não é tudo. Tampouco o método é tudo. Tampouco a ciência. E de que nós, quando demasiadamente agarrados à concretude da vida, obsedados pela especialização cerebral da vida, acabamos nos afastando dela, consumidos pela indiferença, pelo tédio, e sobretudo pela soberba de não darmos conta dos segredos da vida.
Mas por outro lado, quando a chaga do coração é por ventura exposta, e pressentimos a ação determinante e misteriosa das emoções e dos afetos no florescer da existência, um outro risco é que se apodera de nós, uma espécie de inadequação e deslocamento, e a possibilidade de nos sentirmos sempre e cada vez mais ridículos. E em sendo ridículo aquele homem sonhou. E em sendo ridículos, ele e eu, sonhamos e conhecemos a Verdade. Verdade inaudita, verdade do coração, verdade alimento da alma, que tanto desejo pronunciá-la, mas não consigo, que tanto quero vivê-la, mas tenho pudores, que tanto a vejo como real, se eu não fosse tão humanamente orgulhoso.
Foi então que a maldade se apoderou de mim, reconhecida por mim, tocada por mim. Vinte e quatro dias debruçado sobre Os Demônios. Cismado caminhei na derradeira noite. E me lembrei da crueza de Lady Macbeth e de como certo tipo de vileza me incita. Em Os Demônios é Nikolai Stavróguin o maldito sedutor. “Vou defendê-lo até o fim”, proclamei a passos largos contra o vento me preparando para o dia seguinte, quando se iniciaria o Ciclo 2010 do Laboratório de Humanidades.
Na pauta, eu imaginava Varvara, Stiepan, Piotr, Kiríllov, Chátov, Nikolai... Quantas histórias, quantas “almas indesencorajadas”, “resolutas indo à luta” (1), que na arena do LabHum enfrentariam seus demônios, assim como eu, que naquela noite nebulosa já intuía tudo do que seria capaz. Piotr Stiepánovitch é sem dúvida um grande patife - me perturbava a cabeça - porém mais descarado e enigmático é Nikolai Stavróguin, cuja patifaria é de nobre linhagem. E eu, um patife menor, chafurdando no breu entre as luzes do canteiro central, silencioso e atordoado em meio à lamentação ruidosa da Avenida Paulista, sofria naquela hora a angústia de não conseguir captá-lo, embora eu o acolhesse por inteiro num fascínio de quase prazer. Era de Nikolai a minha paixão e martírio. Era do seu veneno que eu queria beber. Eram os argumentos em sua defesa que eu pretendia tecer, vasculhando em sua névoa calada uma súplica de salvação.
Em confissão, reconheço o quanto tudo isso me faz parecer dramático. Admito até certa afetação no que escrevo. Outro dia li que “por meio da palavra escrita, nós nos livramos de alteridades incômodas” (2). Pois bem, tudo se torna mesmo pequeno quando se admite o óbvio: a) a salvação de Nikolai, ou essa minha ânsia desmedida de compreendê-lo, não passa de mera tentativa de justificar os meus próprios e medianos pecados; b) todo esse esforço virtual é vontade de desabitar os pântanos da minha existência real, pois ser Nikolai Stavróguin, afinal, é olhar a paisagem de cima, é debruçar-se em crateras, é “vaguear pelo precipício” e nele se atirar de cabeça para baixo. Por isso, o que mais amedronta Stavróguin é a mediocridade. Quanto a mim, medroso que sou, porém abissal como me pretendo, é graças à literatura que realizo tais ousadias; c) deixo a vocês, leitores, a possibilidade de tantas outras interpretações, tanto mais óbvias quanto reveladoras.
Mas Nikolai pode ser tudo, menos afetado e frívolo, menos bajulador ou interesseiro. Na verdade, parece que a ele nada interessa, mesmo que muitos tenham sido por ele seduzidos. Nikolai tinha “a beleza de uma pintura, mas, ao mesmo tempo, tinha qualquer coisa de repugnante. Diziam que seu rosto lembrava uma máscara”. Ouvi nessas palavras de Dostoiévski aquilo mesmo que me fascinou em Baudelaire, via Michel Leiris (3), para quem “a condição essencial da Beleza está num descompasso, num desvio, numa dissonância”. Pois bem, como consta na aparência de Nikolai uma gota de veneno, um desvio, uma dissonância que o faz algo repugnante - seguindo o raciocínio do próprio Dostoiévski, haveria também uma outra gota de virtude nas atitudes de Stavróguin? Naquela noite, e por muitas outras, eu acreditei que sim.
Em Os Demônios, Dostoiévski narra a história de uma conspiração política com o fim de estabelecer a “república social universal de todos os homens e da harmonia”. Os conspiradores, comandados por Piotr Stiepânovitch, são como criaturas demoníacas que andam em legiões. Ambientado numa pequena província russa, esses ativistas se organizaram “acreditando entusiasticamente que eram apenas uma unidade entre centenas e milhares de quintetos espalhados pela Rússia e que todos dependiam de algum órgão central, imenso e secreto, que por sua vez estava organicamente vinculado à revolução mundial na Europa” (4). Escrito em 1870, Dostoiévski concebeu a obra para recriar ficcionalmente um episódio verídico ocorrido em 1869, o assassinato do estudante I.I. Ivanov pelo grupo niilista liderado por S.G. Nietcháiev, autor, com o famoso anarquista Bakunin, do Catecismo Revolucionário, que se tornaria a cartilha de todo guerrilheiro do século XX.
Mas Os Demônios não é um livro político e panfletário. É um romance sobre o homem e sobre Deus, sobre as forças inumanas e sobre “homens que esqueceram quem são e por que são” (5):
Os Demônios é um romance difícil e magnífico, um romance profético sobre o destino da Rússia e sobre o século XX. A negatividade devastadora de Stavróguin e Piotr não são expressões de um mal abstrato e metafísico, ao contrário, são expressões vívidas e concretas ao longo do romance da perfeita liberdade da vontade humana. Na plenitude de tal liberdade a personalidade humana é destruída, a solidão se instala, a ligação entre os homens é cortada e as bases sociais abaladas. Dostoiévski nos apresenta um brilhante insight do estado de declínio e inadequação da alma mutilada e espiritualmente impotente. Deslocado o centro da gravidade para a liberdade da vontade humana, “emancipados” das potências de Deus, os homens passam a voar pelo espaço (6).Na dinâmica do Laboratório de Humanidades, uma alma russa foi em mim se delineando. Intenso, extremado, abissal. Cruel, devasso, contraditório. Bom, generoso, humano. Para cada movimento meu, um olhar, uma confirmação, uma refutação. No compartilhar da história e das emoções, o instigamento, a reflexão, a compreensão, a vontade. “O objetivo da arte é preparar uma pessoa para a morte, arar e cultivar sua alma, tornando-a capaz de voltar-se para o bem” (7). Percurso esse que para Dostoiévski, segundo Jacqueline, amiga e companheira do LabHum, “pressupõe o reconhecimento do mal dentro de nós mesmos”.
E foi nesse reconhecimento do mal em mim que vivi Os Demônios no Laboratório de Humanidades. É duro defender sozinho o indefensável. Todos me diziam que Nikolai Stavróguin era a própria encarnação demoníaca do vazio, do tédio, do Nada. Em contraposição eu argumentava que Nikolai havia sentido toda a profundidade do seu crime, que ele mesmo queria se perdoar e por culpa andava à procura de humilhações e sofrimentos desmedidos. Tudo em vão. Nikolai começou a ruir quando sozinho me dei conta de que ele havia, ao mesmo tempo, plantado em Chátov a crença em Deus, enquanto em Kiríllov cultivara a semente do suicídio. Nikolai não tem coração! Nikolai é perverso! Afinal foram tantas as atrocidades! Estuprou a pobre menininha. Deixou matar a coitada da coxa. Enfim, capitulei diante de todos, embora em meu coração persistisse - e ainda persista - um estranho sentimento que luta por reconhecimento. Eu não sei o que é. Só sei que quando eu declarei “tudo bem, Nikolai é um demônio”, o Dante disse “NÃO, veja bem Licurgo, Nikolai é humano”. E essa advertência fez toda diferença, pois como definir taxativamente um Homem? Como ser Homem e ser Absoluto? A radical experiência humana é singular e vertical. Emocionado, entusiasmado, só me lembro que encerrei minha participação naquele dia citando os versos de Walt Whitman:
Me contradigo?
Tudo bem, então... me contradigo:
Sou vasto... contenho multidões. (8)
E essa multidão que habita em mim sabe agora reconhecer o mal. Sabe até contemplá-lo em sua beleza. E na beleza que nele se encerra, ainda que por caminhos tortuosos, ver-se revelada a transcendência. Em Os Demônios Dostoiévski diz que “a verdade verdadeira é sempre inverossímil” e que “para tornar a verdade mais verossímil, precisamos necessariamente adicionar-lhe a mentira”. Talvez salpicando mentiras, acredito que pela exacerbação do mal também se chega a Deus, pois quando por fim optamos entre realizar a maldade ou deixá-la à espreita, nessa hora, ao exercer a liberdade na opção pelo bem, cumpre-se o destino sagrado do homem.
Completamente insuficiente para continuar, cito um trecho essencial no fechamento desse meu primeiro pequeno e intenso ciclo russo. Porque não tive tempo e porque não quis influenciar minha experiência de Dostoiévski, li somente na véspera do encerramento das discussões no Laboratório de Humanidades a dissertação de Mestrado da Jacqueline sobre Os Demônios:
A negação do mal para Dostoiévski nega a progenitura do homem, nega a profundeza de sua verdadeira natureza, e ainda, nega a liberdade do espírito humano e a responsabilidade que lhe é inerente. O mal é sinal que existe no homem uma profundeza interna ligada à personalidade; só a personalidade pode criar o mal e responder por ele, uma força impessoal não seria capaz de ser responsável pelo mal. A concepção do mal e da liberdade em Dostoiévski está ligada à sua concepção de personalidade. Negar a personalidade é também negar o mal, se existe no homem a personalidade em profundeza, então o mal tem fonte interior e não pode ser resultado de circunstâncias externas. Convém ao homem, por sua filiação divina, pensar que o caminho do sofrimento resgata e consome o mal. Porque o sofrimento no homem é justamente o indício de usa profundeza.Então, uma vez embebido em tinta russa, carregado de luz e sombra, certeza e perplexidade, numa veemência quase espiritual, assumo e realizo no entusiasmo e no exagero de minha alma a personalidade que sou. Um dia a Jacqueline falou no LabHum que esse meu jeito nervoso, e os meus olhos inquietos, me faziam parecer um personagem dostoievskiano. Depois me disse que sentia que eu estava “no método”. Era um elogio, eu sabia, embora eu não pudesse naquele momento compreendê-lo. Até que por sua generosidade ela me fez conhecer o escritor grego Nikos Kazantzakis:
Dostoiévski não tratou o mal em suas obras do ponto de vista da lei. Ele buscou reconhecer o mal. Reconhecimento como um caminho que o homem deve seguir, seu destino trágico, destino de sua liberdade, e experiência suscetível de levá-lo ao conhecimento de si mesmo. Experiência interior que acaba por demonstrar o Nada do mal, e que no decorrer desta experiência o confunde e o consome. Pois não se expia o mal por um castigo exterior, mas pelas consequências inelutáveis que traz em si. (9)
Sentia que era este o dever, o meu único dever: reconciliar os irreconciliáveis, arrancar do fundo de mim mesmo as espessas trevas ancestrais para delas fazer luz, na medida das minhas possibilidades. Não é este o método de Deus? Não é este o método que nós temos, portanto, o dever de aplicar, seguindo os seus passos? A nossa vida é um relâmpago muito breve, mas temos sempre tempo. (10)“Reconciliar os irreconciliáveis”. “Arrancar do fundo de mim mesmo as espessas trevas ancestrais”. E não é essa mesma a minha busca do Infinito? Não é esse o sabor agridoce que tanto tenho perseguido? Agora sei que burilar essa minha alma russa tem sido fundamental na “concretização” do gosto do infinito em mim.
Quanto a Tolstoi e “A Morte de Ivan Ilitch”, nem tenho o que dizer. A experiência foi tão marcante que só consegui traduzi-la nos dois textos que eu já publiquei aqui: “Ivan Ilitch não leu O Livro dos Prazeres” e “Hei de ser indecente”, além dos e-mails que mandei para os meus amigos, intimando-os a ler Tolstói imediatamente. De resto, nunca nos esqueçamos que “nossa vida é um relâmpago muito breve, mas temos sempre tempo”.
Bibliografia:
Dostoiévski, F. Duas Narrativas Fantásticas: A dócil e O Sonho de um Homem Ridículo. Tradução de Vadim Nikitin. São Paulo: Ed. 34, 2003.
Dostoiévski, F. Os Demônios. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. 34, 2004.
Tolstoi, L. A Morte de Ivan Ilitch. Tradução de Boris Schnaiderman. São Paulo: Ed. 34: 2006.
Notas:
(1) Versos de Walt Whitman. Poema Vida. Publicado nesse blog no post “Desvios e Estridências”.
(2) Miguel Sanches Neto. É dele a citação, mas não sei em que obra. Li a frase, e anotei, ao acaso, na Livraria Cultura.
(3) Leiris, M. Espelho da Tauromaquia. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 38. [A frase referida no texto é uma referência ao conceito estético que norteava a obra do poeta Charles Baudelaire].
(4) Lacerda, R. Fiódor Dostoiévski. São Paulo: Dueto Editorial, 2008 - (Entre Clássicos: 7).
(5) Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 21.
(6) Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 22.
(7) Tarkovskiaei, A. A. Esculpir o Tempo: Tarkovski. Apud: Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 22.
(8) Whitman, W. Folhas de Relva. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2008.
(9) Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 108.
(10) Kazantzakis, N. Carta a Greco. Tradução de Armando Pereira da Silva. Lisboa: Editora Ulisseia, 1961. (Documento do Tempo Presente, nº 40).
quarta-feira, 26 de maio de 2010
A Cultura Contemporânea na Clínica de Bento XVI: as patologias da modernidade e a terapêutica da humanização.
Dante Marcello Claramonte Gallian
Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde (CeHFi) da UNIFESP.
Bento XVI e a Humanização
Já faz algum tempo que um dos temas que mais me tem ocupado, enquanto pesquisador e professor universitário, é o da humanização. Sendo historiador de formação e trabalhando há mais de uma década numa escola de Medicina, acabei me defrontando com esta questão candente que, formulada de maneira especial na área da saúde, começa se projetar, inevitavelmente, para todos os campos do saber, apresentando-se como um dos grandes desafios da cultura contemporânea.
Ambientado, por um lado, no contexto problemático dos controversos programas de humanização e incitado, por outro, por experiências interpelativas a partir da leitura, fruição e reflexão de clássicos da literatura com estudantes e profissionais da saúde, fui me dando conta de como as humanidades (a filosofia, as artes, a literatura...) acabam por se revelar um meio privilegiado e eficaz de humanização. E este, portanto, tem sido, nos últimos anos, o meu objeto de experiência e investigação: as humanidades, a formação humanística e a humanização no contexto da universidade, particularmente no campo da saúde.
Ao receber o convite da UNISAL para falar sobre “Bento XVI e a Cultura Contemporânea” em seu Simpósio de Teologia, aceitei-o, confesso, com desculpável oportunismo. Intuía, a partir de experiências anteriores com o magistério do papa Bento XVI, que talvez, uma leitura mais profunda, abrangente e sistemática de seus textos, seria de muito proveito para minha reflexão pessoal e para o meu projeto de pesquisa. E efetivamente: não só intuí corretamente, como esta nova experiência acabou por superar minhas expectativas. A leitura dos documentos do magistério de Bento XVI sobre a questão da cultura contemporânea, não apenas veio ao encontro das reflexões teóricas e experiências empíricas que venho desenvolvendo (fortalecendo-as portanto), como também abriu novos horizontes de reflexão, contribuindo enormemente para uma ampliação do escopo de minha pesquisa. Neste sentido quero, antes de tudo, agradecer a grande oportunidade proporcionada por este providencial convite.
Pode parecer estranho, à primeira vista, como um conjunto de documentos que configuram o magistério de um papa pode não apenas inspirar, mas também contribuir de forma efetiva para o desenvolvimento de um projeto de pesquisa acadêmico sobre a humanização na área da saúde. Tal estranheza, entretanto, se efetivamente existe, deve-se a um preconceito típico dos ambientes acadêmicos modernos e que se explica justamente por um fenômeno descrito pelo próprio Bento XVI: o estreitamento da razão[2] – noção que retomarei mais adiante e que consiste, sumariamente, na limitação auto-decretada da razão, fundamentada “numa síntese entre platonismo (cartesianismo) e empirismo, que o sucesso técnico confirmou.”[3] Constituindo-se no próprio fundamento do pensamento científico moderno, tal perspectiva de razão, associada com outros elementos característicos do ethos acadêmico atual, rejeita categoricamente todo tipo de “conhecimento” que não se adeque aos seus pressupostos teóricos e, principalmente, aos modismos intelectuais do momento. Assim, idéias advindas de um universo não cartesiano e não empirista (ainda que a própria academia, em alguns âmbitos, considere-se pós-cartesiana e anti-positivista) e, principalmente, procedentes de uma mente religiosa (e, pior ainda, de um papa!) são, de acordo com esta lógica da universidade moderna, indiscriminadamente desqualificados. E é, portanto, esta mesma postura auto-limitada que vigora no contexto acadêmico que acaba por asfixiá-lo e desumanizá-lo, fazendo com que a universidade contemporânea perca, muitas vezes, a oportunidade de contribuir de forma efetiva para o desafio da humanização.
O magistério de Bento XVI, além de abrir perspectivas mais amplas sobre a condição humana a partir da experiência do religioso (dimensão inegável desta mesma condição humana), apresenta uma abordagem significativa para a discussão da cultura contemporânea, por se assentar numa base filosófica extremamente séria e sólida; fruto do amadurecimento de um professor de filosofia de reconhecida competência, considerado um dos maiores pensadores vivos da atualidade, num sentido amplo, que transcende o âmbito teológico-religioso.
Diante do desafio que se descortina hoje, o de reestruturar a universidade e a atividade acadêmica frente à ameaça implacável da desumanização da cultura e do homem, recorrer a uma perspectiva que venha no sentido de ampliar o escopo e a lógica da razão apresenta-se como algo oportuno e desejável. Neste sentido, o pensamento de Bento XVI, através também de seu “magistério” configura-se como uma contribuição nada desprezível. E o mergulho sério e despreconceituoso neste conjunto de documentos confirmam tal noção.
O Pensamento “Clínico” de Bento XVI e o Diagnóstico da Desumanização
Como sistematizar o pensamento de Bento XVI? Sugiro uma lógica que se poderia qualificar de clínica. A prática médica estabeleceu desde suas origens um itinerário composto de várias etapas. Como excelente médico, Bento XVI, seguindo um itinerário eminentemente iátrico, debruça-se sobre o mundo atual, que sofre de um mal cultural, analisa a sintomatologia (a identificação dos sinais e sintomas patológicos da nossa cultura), diagnostica as causas da patologia e, por fim, prescreve uma intervenção terapêutica, capaz de promover a saúde - que, no caso da cultura, seria a sua humanização.
Em diversas intervenções e discursos, Bento XVI, ao se referir às manifestações mais marcantes da cultura contemporânea, o faz, precisamente, como sintomas de um contexto patológico. Concomitantemente com os inegáveis progressos no campo científico-tecnológico e no econômico-social, o homem da civilização pós-moderna experimenta, paradoxalmente, um sentimento de solidão e abandono[4], característico do nosso mundo globalizado. Se, por um lado, as desigualdades e a exploração econômica explicam a desolação de milhões, por outro, a carência de valores e sentido de vida acabam por lançar outra importante parcela da humanidade na “angústia que conduz ao desespero.”[5]
No texto do discurso que pretendia ler durante sua visita à Universidade “La Sapienza” de Roma, em janeiro de 2008[6], Bento XVI, citando Santo Agostinho, retoma uma idéia que traduz, de maneira emblemática, um dos sintomas mais característicos de nosso contexto patológico: a reciprocidade entre scientia e tristitia – entre ciência e tristeza. O simples saber, dizia o bispo de Hipona, deixa-nos tristes. “E realmente – completa o papa – quem se limita a ver e apreender tudo aquilo que acontece no mundo, acaba por ficar triste.”[7]
Ao instrumentalizar o conhecimento e abrir mão da busca da verdade, das questões essenciais da existência humana, o homem moderno esvaziou a ciência do seu conteúdo fundamental e, se por um lado, isso o permitiu ir muito longe do ponto de vista das conquistas técnicas, por outro, o afastou tremendamente de si mesmo, levando-o a uma “zona de dessemelhança” – a regio dissimilitudinis de Santo Agostinho[8]. Como explica Bento XVI:
Agostinho tomara esta palavra da filosofia platônica para caracterizar o seu estado interior antes da conversão (cf. Confissões, VII 10.16): o homem, que é criado à semelhança de Deus, em conseqüência do seu abandono de Deus precipita na "zona da dessemelhança" - num afastamento de Deus tal que já não O reflete mais, tornando-se assim dessemelhante não apenas de Deus, mas também de si próprio, do verdadeiro ser homem.[9]
Dessemelhante a si mesmo, o homem acaba por perder aquilo que lhe é próprio. Nas palavras do próprio papa: “a perda daquilo que é humano no homem.”[10] Chegamos pois, ao diagnóstico da patologia que acomete o homem contemporâneo: a desumanização.
Em certa medida, as causas desta patologia já foram sumariamente apontadas na própria caracterização de seus sintomas: a tristeza, por exemplo, como resultado de uma ciência desvinculada da verdade; o desespero, como resultado da precipitação na “zona de dessemelhança”... Para se chegar, porém, a um diagnóstico mais completo, necessário para que se delineie um prognóstico coerente e um tratamento eficaz é preciso, segundo Bento XVI, explorar suas causas mais profundas, investigando suas raízes históricas. Compreendendo a desumanização do homem contemporâneo como uma patologia característica da Modernidade, fruto, na verdade, da sua crise, nada mais adequado, portanto, do que iniciar esta abordagem a partir “de um estudo compreensivo” sobre esta mesma crise:
Nos últimos séculos, a cultura européia tem sido poderosamente condicionada pela noção de modernidade. Contudo, a presente crise tem menos a ver com a insistência da própria modernidade a respeito da centralidade do homem e das suas solicitudes, do que com os problemas levantados por um "humanismo" que reivindica a construção de um regnum hominis desvinculado do seu necessário fundamento ontológico. Uma falsa dicotomia entre o teísmo e o autêntico humanismo, impelido ao extremo de criar um conflito irreconciliável entre a lei divina e a liberdade humana, tem levado a uma situação em que a humanidade, em virtude de todos os seus progressos econômicos e técnicos, se sente profundamente ameaçada. Como afirmava o meu Predecessor, Papa João Paulo II, temos necessidade de nos interrogarmos: "se o homem, enquanto homem, no contexto deste progresso, se torna verdadeiramente melhor, isto é, mais amadurecido espiritualmente, mais consciente da dignidade da sua humanidade, mais responsável, mais aberto aos outros" (Redemptor hominis, 15). O antropocentrismo que caracteriza a modernidade nunca pode desvincular-se do reconhecimento de toda a verdade acerca do homem, o que inclui também a sua vocação transcendente.[11]
A crise da Modernidade, realidade plenamente perceptível na contemporaneidade através da derrocada das utopias, da desesperança e da própria desumanização da cultura, só pode ser efetivamente compreendida quando se reconhece, como bem aponta Bento XVI, o equívoco antropológico que se delineou nas suas raízes, nas suas origens. O antropocentrismo moderno, ao reduzir o homem como medida suficiente de si mesmo e, de maneira particular, na dimensão da sua razão (no sentido também moderno do termo), armou como que uma armadilha para si próprio, fechando as portas para outras dimensões da existência e do entendimento, e estabeleceu assim, sem querer, os fundamentos da desumanização que hoje se vive.
Tal realidade patológica pode ser percebida de forma emblemática, segundo Bento XVI, naquilo que ele chama de auto-limitação moderna do conceito de razão:
No fundo, temos a auto-limitação moderna da razão, com a sua expressão clássica nas «críticas» de Kant, mas ulteriormente radicalizada pelo pensamento das ciências naturais. Em poucas palavras, este conceito moderno da razão baseia-se numa síntese entre platonismo (cartesianismo) e empirismo, que o sucesso técnico confirmou. Por um lado, pressupõe-se a estrutura matemática da matéria, por assim dizer a sua racionalidade intrínseca, que torna possível compreendê-la e usá-la na sua eficácia operacional: este pressuposto básico é, por assim dizer, o elemento platônico no conceito moderno da natureza. Por outro lado, trata-se da utilização funcional da natureza para as nossas finalidades, onde só a possibilidade de controlar verdade ou falsidade através da experiência é que fornece a certeza decisiva. O peso entre os dois pólos pode, segundo as circunstâncias, oscilar para um lado ou outro.[12]
Assim, apenas a certeza que deriva da sinergia entre matemática e experiência nos permite falar de cientificidade. “Tudo o que pretenda ser ciência – continua o papa – deve conformar-se com este critério.”[13] E, por outro lado, tudo o que transcende esta possibilidade de aferição “científica” estaria portanto no campo do a-científico ou pré-científico, tal como o problema de Deus e das questões existenciais e religiosas do homem. Ora, tal auto-limitação do conceito de razão e de ciência determina a larga um estado de cisão que acaba por redundar no desvirtuamento da razão em racionalismo e da ciência em cientificismo, principais agentes patológicos na crise desumanizadora que caracteriza a pós-modernidade. Em sua busca por construir um humanismo efetivamente autônomo, tendo como fundamento apenas a si mesmo e sua própria razão, o homem moderno, concomitantemente com as grandes conquistas científico-tecnológicas, próprias de quem se estabelece como dominador da natureza, desencadeou uma dinâmica patológica profundamente desumanizadora que hoje o ameaça e o desafia.
A Terapêutica Humanizadora
Estabelecido o diagnóstico, o raciocínio clínico de Bento XVI nos leva ao passo seguinte: a terapêutica. Tendo identificado as causas da patologia na crise da modernidade, ou seja, na própria dinâmica auto-centrada e auto-limitada de seus pressupostos antropológicos e de seus conceitos de razão e ciência, o papa, com coerência clínica, depreende que a ação terapêutica está na inversão da dinâmica patológica; ou seja, frente à auto-limitação e à auto-centralização, a abertura, a busca por ir ao encontro do outro, a descentralização. Concretamente, o remédio receitado pelo papa é o da ampliação ou alargamento do conceito de razão.
Em seu célebre discurso na Universidade de Regensburg, onde este tema aparece como elemento central, Bento XVI colocava:
Portanto, a intenção não é retirada, nem crítica negativa; pelo contrário, trata-se de um alargamento do nosso conceito de razão e do seu uso. Porque, juntamente com toda a alegria face às possibilidades do homem, vemos também as ameaças que resultam destas mesmas possibilidades e devemos perguntar-nos como poderemos dominá-las. Consegui-lo-emos apenas se razão e fé voltarem a estar unidas duma forma nova; se superarmos a limitação autodecretada da razão ao que é verificável na experiência, e lhe abrirmos de novo toda a sua amplitude.[14]
Um ano mais tarde, no discurso proferido aos participantes do Primeiro Encontro Europeu de Professores Universitários, intitulado “Um novo humanismo para a Europa. O papel das universidades”, Bento XVI retoma esta mesma noção terapêutica, afirmando:
Uma segunda questão está relacionada com a abertura da compreensão que temos acerca da racionalidade. O correto entendimento dos desafios apresentados pela cultura contemporânea e a formulação de respostas significativas a tais desafios devem aproximar-se de maneira crítica das tentativas insuficientes e, em última análise, irracionais de limitar a finalidade da razão. Pelo contrário, o conceito de razão tem necessidade de ser "ampliado", para ser capaz de explorar e de incluir os aspectos da realidade que vão além daquilo que é puramente empírico. Isto há de permitir uma abordagem mais frutuosa e complementar da relação entre fé e razão. O nascimento das universidades européias foi fomentado pela convicção de que a fé e a razão devem cooperar na busca da verdade, cada uma respeitando a natureza e a autonomia legítima da outra, mas trabalhando em conjunto, harmoniosa e criativamente, em vista da realização de cada pessoa humana na verdade e no amor.[15]
Na prática, a aplicação da terapêutica do alargamento ou ampliação do conceito de razão exige o desenvolvimento de uma visão interdisciplinar do conhecimento, que não apenas busque harmonizar as diversas ciências que se apresentam no cenário atual, como também e principalmente, que incorpore outras dimensões da experiência humana, como as da fé e da sabedoria.
O homem - discursava o papa na Pontifícia Academia das Ciências – não pode depositar na ciência e na tecnologia uma confiança tão radical e incondicional, a ponto de acreditar que o progresso científico e tecnológico consegue explicar tudo e suprir completamente todas as suas necessidades existenciais e espirituais. A ciência não pode substituir a filosofia e a revelação, oferecendo uma resposta exaustiva às interrogações mais radicais do homem: perguntas a respeito do significado da vida e da morte, dos valores últimos e da natureza do próprio progresso. Por este motivo, depois de ter reconhecido os benefícios adquiridos pelos progressos científicos, o Concílio Vaticano II recordou que "os métodos de investigação próprios destas ciências são erroneamente assumidos como regra suprema da investigação de toda a verdade", e acrescentou que "pode temer-se que o homem, demasiado orgulhoso das descobertas atuais, venha a pensar que se basta a si mesmo e que não precisa de procurar valores mais altos" (Ibid., n. 57).[16]
A finalidade da razão humana não se restringe em compreender o funcionamento ou mecanismo da natureza para que dela possa o homem se apoderar e tirar-lhe proveito. A razão deve estar aberta e voltada para “procurar valores mais altos”, para ir em busca da verdade, das questões essenciais da existência humana e, para tanto, deve lançar mão da teologia, da filosofia e das humanidades (das artes, da literatura) não apenas como disciplinas auxiliares, mas como fontes de efetivo conhecimento. Conhecimento este que não se limita à dimensão teórica, mas que se desdobra em sabedoria, em “saber-viver”.
É nesse âmbito, portanto, que se percebe como a ampliação ou alargamento do exercício da razão tem um efeito efetivamente terapêutico neste contexto: ela configura um movimento humanizador. “A pesquisa científica – colocava o papa em discurso na Universidade de Pávia – tende para o conhecimento, enquanto a pessoa precisa também da sabedoria, isto é, daquela ciência que se expressa no ‘saber-viver’.”[17] Ampliar não apenas o conceito mas o próprio movimento do pensar acaba por desencadear um processo de ampliação do próprio ser humano, não apenas do ponto de vista intelectual, mas antes integral, envolvendo a inteligência, o coração e a vontade. Eis o Novo Humanismo que estimula e orienta esta terapêutica humanizadora que propõe Bento XVI.
Espaço e Agentes Terapêuticos
Na dinâmica do raciocínio iátrico clássico, há uma associação direta e necessária entre terapêutica e dieta. E esta última não se limitava, como hoje se pensa, em simples disciplina alimentar. Na lógica hipocrática, fundamento do pensamento médico ocidental, a dieta abarca não apenas o âmbito da nutrição, mas tudo o que se relaciona com o viver humano: o ar que se respira, o lugar em que se habita, as idéias, pensamentos e costumes que ocupam e orientam a mente. Neste sentido, a terapêutica exige, obrigatoriamente, um tempo e um espaço convenientes, assim como agentes adequados para se efetivar.
Projetando, mais uma vez, este raciocínio para o pensamento e magistério de Bento XVI, verifica-se que na terapêutica humanizadora por ele proposta, o espaço conveniente e mesmo privilegiado para a sua efetivação é, sem dúvida, o espaço da Universidade.
Penso que se possa afirmar – colocava o papa no texto do discurso que seria proferido na Universidade de Roma – que a verdadeira e íntima origem da universidade esteja na sede de conhecimento, que é própria do homem. Este quer saber o que é tudo aquilo que o circunda. Quer a verdade. Neste sentido, podemos ver o questionar-se de Sócrates como o impulso do qual nasceu a universidade ocidental.[18]
Impulsionado por esta “sede de conhecimento” o homem que instintivamente procura “ampliar o seu conceito de razão”, acaba por querer abarcar o próprio universo, através do caminho do questionamento, da crítica, da pesquisa, do debate. Eis, segundo Bento XVI, o espírito que plasmou a universitas studiorum da Idade Média e que, em grande medida, estabeleceu as bases do autêntico humanismo, promotor de uma efetiva via de humanização.
Se é verdade que as grandes universidades, que na Idade Média nasciam em toda a Europa, tendiam com confiança para o ideal da síntese de todos os saberes, isto estava sempre ao serviço de uma autêntica humanitas, ou seja, de uma perfeição do indivíduo no interior da unidade de uma sociedade bem ordenada.[19]
Afetadas de maneira especial pela visão moderna de razão e ciência – visão esta que, paradoxalmente, elas próprias ajudaram a gestar – as universidades, em grande medida, foram perdendo esta feição humanística, para se tornarem muitas vezes apenas centros de formação profissional e de desenvolvimento de pesquisa científica. Esvaziadas de seu conteúdo essencial, as universidades modernas apresentam-se assim como fomentadoras da própria patologia da desumanização. Como denuncia Bento XVI:
Não é porventura verdade que com frequência hoje no mundo a prática da razão e a pesquisa acadêmica são obrigadas — de modo subtil e por vezes nem tanto subtil — a resignar-se às pressões de grupos de interesses ideológicos e à ilusão de objetivos utilitaristas a curto prazo ou apenas pragmáticos? Que poderia acontecer, se a nossa cultura se tivesse que construir a si mesma unicamente sobre argumentos que estão na moda, com escassa referência a uma tradição intelectual histórica genuína ou sobre as convicções que são promovidas com muito ruído e fortemente financiadas?[20]
Neste sentido, para que a universidade volte a ser o espaço adequado e privilegiado da promoção do humano, é preciso que ela se reencontre com sua vocação histórica, abrindo-se novamente para o universal, não apenas numa perspectiva meramente física ou científica, mas também e principalmente na perspectiva metafísica e sapiencial. Recorrendo mais uma vez ao texto de Bento XVI:
Há que ser reconquistada a idéia de uma formação integral, baseada sobre a unidade do conhecimento radicado na verdade. Isto pode contrastar a tendência, tão evidente na sociedade contemporânea, para uma fragmentação do saber. Com o crescimento maciço da informação e da tecnologia nasce a tentação de separar a razão da busca da verdade. Mas a razão, quando é separada da orientação humana fundamental para a verdade, começa a perder a própria direção. Ela acaba por se tornar insensível sob a aparência de modéstia, quando se contenta com o que é puramente parcial ou provisório, ou sob a aparência de certeza, quando impõe a capitulação às exigências de quantos dão de maneira indiscriminada igual valor praticamente a tudo.[21]
A universidade deve, portanto, ser o espaço privilegiado que se abre e que se apresenta como lugar do exercício da reflexão, do questionamento, da procura da verdade; como lugar que acolhe e que, de certa forma, corresponde a essa sede, a essa ânsia de conhecimento da verdade, própria do homem e que se manifesta com especial força no jovem.
Deve ser assim também hoje: quando a compreensão da plenitude e unidade da verdade é despertada nos jovens, eles sentem o prazer de descobrir que a pergunta sobre o que eles podem conhecer lhes abre o horizonte da grande aventura sobre como devem ser e sobre o que devem realizar.[22]
Assim, a universidade como espaço de humanização, de construção de um Novo Humanismo, deve ser o espaço em que as questões essenciais da existência humana, como o viver bem, o morrer, o bem, o mal, o belo, estejam colocadas e que possam ser racionalmente desenvolvidas, com rigor lógico e seriedade, sem preconceitos racionalistas e cientificistas. Pois, como lembra Bento XVI, “desde os tempos de Platão, a educação não consiste no mero acúmulo de conhecimentos ou de habilidades, mas numa paideia, uma formação humana nas riquezas de uma tradição intelectual finalizada a uma vida virtuosa.”[23]
Em suma, para que se cumpra o seu efetivo papel de espaço terapêutico de humanização, é preciso que a universidade se constitua em um verdadeiro laboratório de cultura, em que professores e estudantes trabalhem em conjunto, “investigando temas de particular importância para a sociedade, recorrendo a métodos interdisciplinares e contando com a colaboração dos teólogos.”[24] quest os professores e os estudantes trabalhem em conjunto, investigando
Por fim, complementando o quadro “clínico” apresentado por Bento XVI em seu recente magistério sobre a questão da cultura contemporânea e o desafio da sua humanização, aparece, como elemento essencial o agente terapêutico. Havendo delineado o ambiente, o espaço adequado e privilegiado para a promoção da humanização, a Universidade, o papa indica também o agente privilegiado que deve atuar no interior deste ambiente: o educador. Mas aqui, tal como se mostrou acima no caso da Universidade (em que um reencontro com sua vocação histórica se faz indispensável), observa-se também a necessidade de se especificar as qualidades e o espírito que deve animar este agente privilegiado. E aqui, novamente, Bento XVI recorre a Santo Agostinho, como figura referencial e modelar:
Santo Agostinho era um homem animado por um desejo incansável de encontrar a verdade, de encontrar o que é a vida, de saber como viver, de conhecer o homem. (...) Assim a fé em Cristo não pôs fim à sua filosofia, à sua audácia intelectual, mas ao contrário, estimulou-o ulteriormente a procurar as profundezas do ser homem e a ajudar os outros a viver bem, a encontrar a vida, a arte de viver. Isto era para ele a filosofia: saber viver com toda a razão, com toda profundidade do nosso pensamento, da nossa vontade, e deixar-se guiar pelo caminho da verdade, que é um caminho de coragem, de humildade, de purificação permanente.[25]
Aliando a perspectiva da pesquisa rigorosa, do raciocínio amplo e comprometido com a verdade, com a busca por “encontrar a vida, a arte de viver” e, ao mesmo tempo, com o desejo de “ajudar os outros a viver bem”, Santo Agostinho apresenta-se como figura emblemática deste agente terapêutico indispensável para a humanização da cultura. Ele, na verdade, encarna a própria vivência da caridade intelectual, virtude fundamental que qualifica e deve animar este agente terapêutico humanizador, o intelectual-educador do Novo Humanismo que propõe Bento XVI.
A caridade intelectual é o ingrediente facilitador e propiciador do caminho para aqueles que têm fome e sede de conhecimento, de verdade e de humanização.
Estes perigosos desenvolvimentos põem em evidência a urgência particular daquilo a que poderíamos chamar "caridade intelectual". Este aspecto da caridade exige que o educador reconheça que a profunda responsabilidade de guiar os jovens à verdade é unicamente um ato de amor. Na realidade, a dignidade da educação reside na promoção da verdadeira perfeição e a alegria de quantos devem ser guiados. Na prática, a "caridade intelectual" apóia a essencial unidade do conhecimento contra a fragmentação que deriva quando a razão está separada da perseguição da verdade. Isto guia os jovens para a profunda satisfação de exercer a liberdade em relação à verdade, e leva a formular a relação entre a fé e os vários aspectos da vida familiar e civil. Quando a paixão pela plenitude e pela unidade da verdade for despertada, os jovens certamente apreciarão a descoberta que a questão sobre o que eles podem conhecer os abre para a vasta aventura do que eles deveriam fazer. Então eles experimentarão "em quem" e "no que" é possível esperar e sentir-se-ão inspirados a dar a sua contribuição à sociedade de uma forma que gera esperança nos outros.[26]
Dirigindo-se primeiramente ao homem de fé, ao cristão católico, e tendo como foco a universidade católica, o magistério do papa Bento XVI apresenta-se, entretanto, como um convite aberto a todos aqueles – educadores, intelectuais, acadêmicos – que reconhecendo a feição patológica que apresenta a cultura contemporânea, vislumbram na ampliação do conceito de razão e na caridade intelectual um “recurso terapêutico” válido e eficiente na busca pela saúde da humanidade. Neste sentido, o magistério de Bento XVI sobre a cultura contemporânea traz subsídios valiosos para todo aquele que se preocupa com o tema da humanização.
[1] Texto elaborado a partir da fala realizada no Simpósio de Teologia da UNISAL no dia 19 de março de 2010, cujo título original era: “Bento XVI e a Cultura Contemporânea: desafios e esperanças para a cultura cristã”. Agradeço especialmente a atenta e inspiradora cooperação do Prof. Francisco Catão, que revisou os originais e sugeriu complementações muito pertinentes.
[2] Bento XVI. Fé, Razão e Universidade: recordações e reflexões. Discurso do Santo Padre na Aula Magna da Universidade de Regensburg durante Encontro com os Representantes das Ciências em 12 de setembro de 2006. Acessado pela web: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2006/september/documents/hf_ben-xvi_spe_20060912_university-regensburg_po.html
[3] Idem.
[4] Cf. Encontro com o mundo da cultura no Collège des Bernardins. Viagem Apostólica à França por Ocasião do 150º Aniversário das Aparições de Lourdes. Paris, 12 de setembro de 2008. Acessível em http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2008/september/documents/hf_ben-xvi_spe_20080912_parigi-cultura_po.html
[5] Bento XVI, Discurso durante visita à Pontifícia Universidade Gregoriana. Roma, 3 de novembro de 2006. Acessível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2006/november/documents/hf_ben-xvi_spe_20061103_gregoriana_po.html
[6] Acessível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2008/january/documents/hf_ben-xvi_spe_20080117_la-sapienza_po.html
Previsto para ocorrer no dia 17 de janeiro de 2008, o encontro na referida universidade foi, sem embargo, cancelado pelos próprios responsáveis pelo convite.
[7] Idem.
[8] Mais uma vez o papa se apóia num conceito agostiniano.
[9] Encontro com o mundo da cultura no Collège des Bernardins. Op. Cit.
[10] Discurso aos participantes na Assembléia Plenária da Pontifícia Academia das Ciências. Vaticano, 6 de novembro de 2006. Acessível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2006/november/documents/hf_ben-xvi_spe_20061106_academy-sciences_po.html
[11] Discurso aos participantes no 1º Encontro Europeu de Professores Universitários. Vaticano, 23 de junho de 2007. Acessível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2007/june/documents/hf_ben-xvi_spe_20070623_european-univ_po.html
[12] Bento XVI. Fé, Razão e Universidade: recordações e reflexões. Discurso do Santo Padre na Aula Magna da Universidade de Regensburg durante Encontro com os Representantes das Ciências em 12 de setembro de 2006. Op. Cit.
[13] Idem.
[14] Idem
[15] Discurso aos participantes no 1º Encontro Europeu de Professores Universitários. Vaticano, 23 de junho de 2007. Op.cit.
[16] Bento XVI, Discurso aos participantes na Assembléia Plenária da Pontifícia Academia das Ciências, 6 de novembro de 2006. Op. Cit.
[17] Bento XVI, Discurso durante encontro com a comunidade da Universidade de Pavia. 22 de abril de 2007. Acessível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2007/april/documents/hf_ben-xvi_spe_20070422_university-pavia_po.html
[18] Op. Cit.
[19] Bento XVI, Discurso no encontro com o mundo acadêmico no salão de Vladislav do Castelo de Praga. 27 de setembro de 2009. Acessível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2009/september/documents/hf_ben-xvi_spe_20090927_mondo-accademico_po.html
[20] Idem.
[21] Idem
[22] Idem
[23] Idem
[24] 1º Encontro Europeu de Professores Universitários. Op. cit.
[25] Discurso na Universidade de Pavia. Op. cit.
[26] Discurso na Sede da Organização das Nações Unidas (ONU) para os Educadores Católicos. Nova York, 17 de abril de 2007. Acessível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2008/april/documents/hf_ben-xvi_spe_20080417_cath-univ-washington_po.html