segunda-feira, 30 de novembro de 2009

O Laboratório de Humanidades: uma experiência de afeto

Por Licurgo Lima de Carvalho
Participante do LabHum

Nietzsche escreveu que nenhuma ideia seria suficientemente confiável se não concebida durante longa caminhada. É que o filósofo romântico prezava o vigor, a potência, embora ele mesmo tivesse uma saúde frágil. E dizem que Nietzsche admirou, até o fim, Montaigne e Goethe, grandes sensuais que não temiam o pecado. Ele desprezava a covardia, sobretudo as morais.

E eu, também um caminhante, dou créditos a Nietzsche: sofro de inspirações justamente quando percorro, a pé, longos trajetos. Mas é especialmente na sexta-feira, dia do Laboratório de Humanidades, que meus pensamentos mais agudos tocam “a ponta afiada do infinito” e dançam alegremente com os “seres moventes do céu”, nas imagens do poeta Baudelaire, eterno inspirador desse blog.

Enfim, desses encontros semanais saio profundamente afetado. O Laboratório de Humanidades é um lugar privilegiado dentro da Universidade, onde nos reunimos semanalmente para discutir, em grupo, clássicos da literatura. Recentemente fui criminoso, matei o rei, usurpei seu trono. Também invoquei a maldade, mudei de sexo, enlouqueci. Mas antes lutei contra as forças do mal, fui um mocinho bom e justo. E agora me preparo para viver uma mulher intensa, perplexa diante de si e da vida. Assim, de Tolkien a Clarice Lispector, passando por Shakespeare, inaugurei minha participação no LabHum, como carinhosamente chamamos essa experiência de humanização.

Humanizar, na concepção do Prof. Dante Gallian, coordenador do LabHum, não é uma questão de verniz, de cobertura de bolo. “Antes é preciso mexer na massa, alterar seus ingredientes”. Não se trata, portanto, de disfarce, de ajuste, mas de comprometimento e vontade.

Mas qual o sentido de “humanizar” o próprio homem? Estaríamos nós, os homens, nos tornando menos humanos? O fato é que nos dias de hoje o termo desumanização nem causa estranheza e frequentemente nos deparamos com os tais “projetos de humanização”, sobretudo em setores da sociedade que lidam com o homem em sua dimensão mais frágil, ou seja, mais humana, tais como hospitais, empresas de convênio médico e afins.

Aprendi com o Prof. Dante que esses “projetos” são na verdade meras tentativas de se amenizar os efeitos colaterais, as distorções causadas pela Modernidade que tenta excluir do homem o transcendente, o não controlável, o não dominável, o não utilizável, tudo em nome da razão que deve estar a serviço do progresso incessante, embasada numa visão puramente cientificista e tecnológica de que somos seres perfectíveis, ajustáveis, programáveis tal qual uma máquina deve ser.

Mas como homem é homem e não máquina, não somos passível de treinamento. Tampouco ficamos mais felizes, ou conformados, seguindo manuais de instrução. Nesse sentido o LabHum é quase terapêutico já que propõe mudanças na estrutura do homem impulsionadas pelo poder que tem a literatura de afetar e ampliar nossa perspectiva existencial.

Nas palavras de Rozélia, labhuniana como eu, o Laboratório de Humanidades é como o “muro de Berlim que se abre entre nós e o mundo”. “É um espaço para falar e ouvir”. É claro que ninguém fala nada de muito íntimo e o foco sempre é a obra literária, mas há o movimento de se perceber no grupo e no outro, de negar e reconhecer certos aspectos da personalidade que se encontrava adormecido. Então, ao mesmo tempo em que é uma experiência altamente intelectual é também uma vivência de reflexão subjetiva, de autoconhecimento, pois ao me envolver, e opinar sobre os personagens, sinto-me exposto na própria carne. Por fim, o que me resta senão elaborar esses sentimentos em mim? O aprendizado que se dá não é apenas intelectual, mas, sobretudo, humano.

Nas palavras do Prof. Dante, no blog do LabHum:

Explorar e aprofundar a experiência afetiva que se produz ao nos depararmos com uma obra literária, é o objetivo primevo do Laboratório de Humanidades, pois sabemos que sem o envolvimento integral da pessoa, enquanto ser dotado de sentimento, inteligência e vontade, não pode haver uma efetiva experiência de humanização. Por isso, antes de adentrarmos em discussões filosóficas, sociológicas ou históricas mais profundas – que não apenas são desejáveis, mas inevitáveis – incentiva-se, antes de tudo, a manifestação e compartilhamento das sensações, das emoções. Tal dinâmica não apenas amplia a própria experiência da leitura individual do sujeito, como abre novas possibilidades de leitura para os outros que o escutam. Começa a experiência da “ampliação da esfera do ser”, como bem coloca Teixeira Coelho em seu ensaio sobre “A Cultura como Experiência”.

[...] Por fim, percebe-se o impacto de toda esta experiência humanística quando, após um certo tempo de participação no Laboratório, começa a se verificar como esta “ampliação da esfera do ser” passa a interferir na prática profissional e na vida como um todo, realidade aferida por não poucos colaboradores desta atividade. O processo, afetivo e intelectivo, detonado pela experiência da leitura e desenvolvido pela dinâmica do compartilhamento e discussão coletiva, completa-se na esfera volitiva, desencadeando mudanças de visão e atitudes; mudanças estas próprias de um movimento de “ampliação”, enfim de humanização.

E foi na “ampliação da esfera do ser” que surgiu essa necessidade de me denunciar publicamente. “Escrever é um ato obsceno”, digitei para minha amiga Eliana quando lhe contei sobre “O Gosto do Infinito”. Mas sei que não é só isso: os desdobramentos dessa experiência certamente serão muitos, a começar pelo extraordinário DESEJO DE CAIR!

E com esse aparente absurdo encerro, na promessa de voltar a escrever sobre essa idéia tão maluca quanto genial de Maurice Blanchot, ensaísta francês.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

A Tragédia, o Bode, e Macbeth

Por Licurgo Lima de Carvalho
Participante do LabHum

No “Laboratório de Humanidades” estamos terminando o ciclo Macbeth. Depois da trilogia “O Senhor dos Anéis” veio Shakespeare a me reconciliar com a concepção trágica da vida. Tragédia vem do grego “tragos” e significa bode, ou seja, viver a tragédia é estar no lugar do bode a caminho do sacrifício: o homem sem autonomia e que luta eternamente contra o destino, consciente de sua derrocada final.

Fatalista, pessimista, concepção trágica demais? Talvez. Mas, embora na vida diária seja importante acreditar que de algum modo venceremos no final, é também humanamente necessário que aceitemos nossas limitações, que encaremos o fato de que pouco na vida realmente está sob nosso controle, que viver é mesmo estar em contato permanente com essa fragilidade que somos. Então, ao contrário de cair no desencanto, encarar a tragédia na vida real ou por meio dos heróis das obras da literatura clássica, traz a ideia de que vale a pena continuar lutando contra o destino, de que essa luta por si só é a vida, e de que é pelos vitoriosos embates cotidianos que nos percebemos corajosos e aptos a enfrentar a vida com dignidade. A morte virá, é certo, mas até lá muito som e muita fúria agitará nossa sombra ambulante.

Agora falando de Macbeth, foi uma catarse. Li de uma tacada só. Ao terminar, após longa caminhada, tive anseios de escrever e teclei com toda lucidez. Veja o que escrevi, exatamente, no momento catártico:

Como o mago Gandalf, que para se tornar o cavaleiro branco precisou passar pelos abismos de fogo e pela escuridão das águas profundas, mergulhar em Macbeth e no seu reino de ambição, intriga, superstição e assassinatos também me iluminou. Foi por Macbeth que redescobri a miséria da escuridão. Foi por Macbeth que, paradoxalmente, me veio à luz essa compreensão: um mergulho nas profundezas mais vis revigoraria meu espírito a me revelar a vida real, diferente de um croqui cinza riscado sobre o papel, mas vida que é perspectiva e sombra, cor e volume.

Meio que por superstição fiquei habituado a uma leitura solar. Nada de pessimismo, desamparo e miséria. Tudo deveria afirmar. Nada remeter ao tormento, à dúvida, ao ressentimento. Milagrosamente tudo deveria me salvar do terror da finitude, do tempo que se acaba, da fraqueza. Hoje finalmente me libertei: vou com Macbeth e Rimbaud passar uma temporada no inferno.

Finalmente vejo o quanto essa minha negação do lado visceral e tenebroso da humanidade foi capaz de me desumanizar. Mesmo sem saber, de repente agi como Macbeth ao acreditar em vaticínios de bruxas e maus espíritos. É como se a maldição sobreviesse a mim se com a maldição eu tratasse, ainda que por meios solares, como a arte e a literatura. Passei então à covardia e ao receio de me ver outra vez rendido ao desencanto existencial que um dia tomou conta de mim quando li “A Náusea”, de Sartre.

Quanto a Sartre e os meus 20 anos, contarei depois essa louca iniciação. Também desvendarei o Laboratório de Humanidades.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O Bem, o Mal – é tudo igual? O drama das palavras e paixões em Macbeth de Shakespeare

Dante Marcello Claramonte Gallian
Coordenador do LabHum

É curioso observar como, numa época tão pródiga de palavras como a nossa, estas acabem sendo tão desvalorizadas. Talvez porque se aplique aqui também a lei fundamental do mercado: quando algo sobra, acaba, inevitavelmente, perdendo o valor. E, palavras, assim como aparelhinhos eletrônicos e microchips encontram-se ad nauseam em nosso mundo. São miríades de miríades pronunciadas, escritas e difundidas nas mais diversas e tecnológicas maneiras todos os dias, minutos, segundos. Elas superpovoam nosso campo de visão nas ruas, nas telas de nossos computadores, celulares, “i-trecos”, ressoam incontroláveis pelas ondas do rádio, mps 3,4,5,6... nas reuniões de escritório, salas de aula, bares, elevadores... Há uma superpovoação e uma superprodução de palavras, de maneira que ninguém já as dá mais atenção. São proferidas de maneira automática, em escala industrial, e recebidas como algo praticamente desprovido de impacto ou significado, tal como consumimos a maior parte das coisas que adquirimos no mercado. Afinal, palavras, são apenas palavras, e nada mais do que meras palavras.

Mas, será isso mesmo? Seriam as palavras nada mais do que palavras? O drama shakespeareano Macbeth parece nos advertir do contrário: as palavras são coisa séria; elas são muito poderosas, podendo determinar a nossa forma de ser e agir.


Segundo Jorge Larrosa Bondía (2002), professor de lingüística da Universidade de Barcelona, “as palavras produzem sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam como potentes mecanismos de subjetivação.” E continua o professor, numa espécie de profissão de fé da palavra:

Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco. As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. E pensar não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com as palavras. (p. 21).


Ao concordar com Larrosa, com a crença no poder e na força das palavras, com a convicção de que fazemos coisas com as palavras e que as palavras fazem coisas conosco, então não podemos acreditar ingenuamente nas Três Bruxas que abrem o drama de Shakespeare dizendo: “O Bem, o Mal – é tudo igual.” (Ato I, cena 1) Apesar de ser esta exatamente a perspectiva que não apenas vigora em nosso contexto mental, mas que inclusive lhe dá sustentação.

Não foram poucos os críticos que apontaram o olhar profético de Shakespeare frente à modernidade que então recém se inaugurava. A sua história sobre Macbeth parece querer dizer que aquilo que parece ser pode, muito bem, não ser na realidade, ou seja, que Bem e Mal não é tudo igual, e que com as palavras não vale o tanto faz.


Macbeth, tane de Gladis, é um grande nobre de velha cepa escocesa. Diante da ameaça traidora que paira sobre seu reino e sobre seu rei, não hesita em enfrentar, juntamente com Banquo (outro grande nobre) o perigo e a própria morte “como o favorito do valor” (Ato I, cena 2). Tendo seus feitos noticiados ao rei Duncan, este lhe confere título maior, tane de Cawdor, recém retirado do indigno traidor vencido.

Antes, porém, que a boa nova lhe seja comunicada por boca humana, Macbeth é avisado por três criaturas estranhas (bruxas, indica Shakespeare) que lhes aparece, a ele e a Banquo, numa charneca próxima de onde se travara a derradeira batalha. Como sabemos, as três parcas não apenas predizem a sua promoção imediata a tane de Cawdor, como também a própria glória real, ainda que (terceira profecia) não transmitida a seus descendentes, já que aos de Banquo ela estaria reservada.

As palavras proferidas pelos “agentes das trevas” (nas palavras de Banquo, Ato I, cena 3), afetam sobremaneira o pobre e desavisado Macbeth, que imediatamente começa sentir o seu efeito insidioso e inquietante. Instantes depois de haverem desaparecido as bruxas, chegam os arautos do rei informando-lhe do seu novo título: tane de Cawdor. Mal tinha tido tempo de refletir nas palavras proferidas e a profecia já começava a se cumprir.


Sabemos que as palavras, quando são mais do que meras palavras, não se limitam a um simples som, vocábulo ou conjunto de letras e sílabas. As verdadeiras palavras, logos em grego, verbum em latim, são como cápsulas que encerram um conteúdo denso, potente, capaz de afetar, mobilizar, vivificar, envenenar, matar. Segundo Larrosa , a tradução que normalmente se faz da palavra grega logos por ratio, latina, origem da vernácula razão, é na verdade mais que uma tradução, uma “traição, no pior sentido da palavra” (p.21). Assim, ao se tomar a definição de homem de Aristóteles, zôon lógon échon, a tradução mais fiel seria “vivente dotado de palavra” e não “animal racional”, como se costuma encontrar normalmente. Ora, tal noção manifesta de forma inconteste a importância da palavra enquanto elemento definidor do ser humano.

O homem é um vivente com palavra. E isto não significa que o homem tenha a palavra ou a linguagem como uma coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas que o homem é palavra, que o homem é enquanto palavra, que todo humano tem a ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido de palavras, que o modo de viver próprio desse vivente, que é o homem, se dá na palavra e como palavra. Por isso, atividades como considerar as palavras, criticar as palavras, eleger as palavras, cuidar das palavras, inventar palavras, jogar com as palavras, impor palavras, proibir palavras, transformar palavras etc. não são atividades ocas ou vazias, não são mero palavrório. (idem)


Dizíamos que as palavras têm conteúdo denso e potente. Isto porque elas têm qualidades. Ou seja, as palavras também são gesto, são cena, são expressão. Todo este universo de conteúdo e forma que cerca, informa e qualifica a palavra, e que é a mesma palavra, determina o seu efeito e sua potência. Aqui, no drama shakespeareano a sua “qualidade” é, fundamentalmente, “profética”; quer dizer, uma palavra proferida por alguém que simplesmente a professa, ou seja, a transmite, a repete, tal como lhe foi dita por um Outro, invariavelmente maior, mais poderoso, sobrenatural – literalmente, alguém acima da natureza mutável, mortal.

Não é pouco conhecida a importância que tiveram os profetas na história da Civilização Ocidental. Na tradição judaico-cristã, a palavra profética comunica os sentimentos de Deus em relação aos homens, em especial ao seu povo escolhido, e prediz o futuro, conclamando assim a conversão dos corações, o arrependimento, a contrição. Neste contexto, a profecia pode tanto anunciar, prever, como também simplesmente advertir o futuro, futuro este que pode ser “mudado”, caso a palavra dê bons frutos nos corações e nas ações dos homens (Cf. Lc 3, 9).

Profetas também encontramos em outras tradições, como entre os gregos, onde as ptonisas e as sibilas aparecem servindo aos diversos oráculos, sendo o de Delfos (o qual até Sócrates vai consultar diante da inquietante questão sobre a sua incomparável sabedoria) o mais famoso. E assim como os deuses, os demônios também têm seus profetas. Neste caso, como bem fica demonstrado no drama escocês de Shakespeare, a palavra profética é proferida não para advertir-nos e salvar-nos, mas “para perder-nos”, como bem informa Banquo na cena 3 do ato I.

Antes, porém, de consumar a sua obra, toda palavra precisa primeiro ser ouvida, ou melhor, ser aceita. As palavras proféticas das três bruxas só surtem efeito em seus destinatários porque se apresentam “sob a cor da verdade” (que o diz é o próprio Macbeth, Ato V, cena 5), como sabiamente considerava Banquo, a quem já citamos anteriormente. Eis a frase completa: “E muita vez, para perder-nos, os agentes das trevas são verídicos: captam-nos com inocentes bagatelas por afundar-nos nos piores crimes”.

A própria artífice dos malefícios em forma de profecia (de palavras), Hécate, senhora das bruxas, revela que tal sortilégio, “tão rico de artificiosa ilusão” é o que afundará o nobre Macbeth “em confusão”, ao lhe infundir “a temerária confiança” – pois esta, “quando por demais, é a perdição dos mortais” (Ato III, cena 4).

Eis pois o conteúdo, a qualidade e o poder deste tipo de palavra: revestida da “cor da verdade”, adentra o entendimento e chega ao coração, atiçando as paixões. O belo, bravo e fiel Macbeth, virtuoso e favorito vassalo do rei, que há pouco tinha demonstrado toda sua força e valor lutando corajosamente contra temíveis inimigos, vê seu coração sucumbir não diante de lanças e espadas, mas diante da palavra de três tristes e repugnantes bruxas.

As palavras adentram-no com sua capa de brilho e verdade, espicaçando-lhe a cobiça e confundindo-lhe a razão:

Esta insinuação sobrenatural não pode ser má, não pode ser boa. Se má, por que certeza de sucesso me dá neste começo de verdade? Pois sou Tane de Cawdor. E se boa, por que assim cedo à imagem pavorosa que os cabelos me eriça e faz meu firme coração palpitar contra as costelas fora do que é normal na natureza? Os temores presentes são mais fracos do que as horríveis imaginações. Meu pensamento, onde o assassínio é ainda projeto apenas, move de tal sorte a minha simples condição humana que as faculdades se me paralisam e nada existe mais senão aquilo que não existe. (Ato I, cena 3)


A palavra das bruxas, que para Banquo, homem prudente – de acordo com o próprio Macbeth, “nele aponta algo que é de temer: tem grande audácia; e à têmpera indomável de su’alma alia uma prudência que encaminha o seu valor a agir com segurança” (Ato III, cena 1) – é algo a ser posto sob suspeita, a ser examinado ou mesmo descartado dada a qualidade de seus emissores, para Macbeth é algo “relativo”: “não pode ser má, não pode ser boa.” Este flerte com a palavra temerária é já o princípio de sua aceitação e a sua aceitação é já o ceder ao seu conteúdo, ao seu poder. Os primeiros sintomas logo são sentidos: os calafrios e palpitações que indicam que algo “fora do que é normal na natureza” tomou conta do coração e da imaginação, submetendo a inteligência e a vontade.

É verdade que, num primeiro momento, Macbeth procura resistir e lutar contra o poder envenenador: “Se a sorte me quer rei – considera consigo mesmo, procurando afastar a terrível tentação – há de coroar-me sem que eu me mexa.” (Ato I, cena 3) Entretanto, o compartilhamento das palavras com a sua esposa, Lady Macbeth, acabarão por dinamizá-las e potencializá-las, de forma que estas, encontrando um terreno ainda mais fértil no coração da mulher, retornarão ao destinatário da profecia com maior potência ainda, fazendo ceder as últimas resistências. Frente às hesitações do atormentado marido, Lady Macbeth despeja-lhe no coração, pelos ouvidos, argumentos suficientemente fortes para faze-lo tomar a “firme decisão”: “já sinto tensa em todo o meu corpo cada fibra para cumprir o ato terrível. Vamos! Respirem inocência, enganadoras, tuas feições: falsa aparência esconda no falso coração a trama hedionda!” (Ato I, cena 7).

Instigado pelo poder sedutor das palavras proféticas, Macbeth vê alterar-se em seu coração a medida das paixões. A ambição, paixão tão própria de corações nobres, instiga-se, cresce e transborda, arrastando na sua correnteza os diques da razão. Como observaria Blaise Pascal, pouco menos de um século depois de Shakespeare: “quando as paixões são as senhoras são vícios, e então dão à alma seu alimento, e a alma com elas se nutre e se envenena.” (Pensamentos, 502).

Despertadas e mobilizadas pelos sentidos e, principalmente, pelas palavras que chegam ao interior através dos sentidos, as paixões alimentam nossa alma, nosso ser. Entretanto, segundo Pascal, “é preciso servirmo-nos delas como de escravos (...) dizendo a uma: Vai, e [a outra] Volta. Sub te erit appetitus [‘sob ti estarão teus desejos’ (Gen, 4,7)]” (idem); para que elas não se tornem senhoras e não nos envenenem, desencadeando nossa “perdição”, como bem advertia Banquo. “As paixões assim dominadas são virtudes”, explica o filósofo, para quem “a avareza, a inveja, a cólera, o próprio Deus as atribui a si; e são tanto virtudes como a clemência, que são também paixões.”

Essa mesma idéia aparece de forma condensada e lapidar no drama shakespeareano através da boca de Macduff, que em diálogo com Malcolm, filho do rei assassinado, afirma: “A intemperança, quando ilimitada, é tirania em nós da natureza.” (Ato IV, cena 3). E – desenvolvendo o tema, desta vez através da voz do médico chamado a socorrer a “loucura” de Lady Macbeth – “quando os atos violam a natureza, eles produzem desordens também contra a natureza.” (Ato V, cena 1).

Macbeth, como vimos, desde o momento em que ouviu as maléficas palavras e as acolheu em seu coração, começa a nele sentir algo “fora do que é normal na natureza” (Ato I, cena 3). E, na medida em que a trama se desenvolve e o ato assassino se consuma, este estado de desordem e tirania do contra-natural vai crescendo e dele se apoderando, lançando-lhe numa espiral de medo, ansiedade, melancolia. Desde então já não consegue dormir “o sono inocente, o sono dissipador das preocupações, morte da vida de cada dia, banho após a dura labuta, bálsamo de almas doridas, principal alimento no banquete da grande natureza!” (Ato II, cena 2). E a tristeza, ao invés da alegria, é o prêmio encontrado na consumação de seus desejos: “Tudo é futilidade; honra e renome estão mortos; o vinho da existência esgotou-se até a borra e só lhe resta borra e esta triste adega.” (Ato II, cena 3).

O mesmo acontece, surpreendentemente, com aquela que depois de haver invocado os “espíritos sinistros” e os “ministros do mal”, pedindo-lhes que lha dessexuassem, que lha espessassem o sangue, “prevenindo todo acesso e passagem ao remorso, de sorte que nenhum compungitivo retorno da sensível natureza” abalasse a sua “determinação celerada”, instigando assim “o que é contrário aos sentimentos naturais humanos” (Ato I, cena 5); mesmo a esta que parece ser mais uma encarnação do mal do que uma mulher, Lady Macbeth, os efeitos do “contra-natural” se fazem presente em sua humana natureza. No Ato III, cena 2, desabafa aquela foi a mão que empunhou a mão do assassino:

Nada ganhamos, não, mas ao contrário, tudo perdemos quando o que queríamos, obtemos sem nenhum contentamento: mais vale a ser a vítima destruída do que, por a destruir, destruir com ela o gosto de viver.


Nem a um nem a outro, porém, o gosto amargo do crime é o suficiente para converte-los. “O que está feito, está feito”, desfere Lady Macbeth depois de seu lamento. E Macbeth, mesmo corroído pela tristeza, faze-lhe coro, dizendo: “As coisas começadas no mal, no mal se querem acabadas.” (Ato III, cena 2). A tirania do mal, uma vez consentida se instaura, e ainda que a consciência grite e se revolte, a vontade se vê fraca, incapaz e vencida, restando-lhe apenas o reconhecimento da derrota: “Mas fartei-me de horrores” – diz Macbeth na última cena, do último ato – “o terror, já acostumado com os meus pensamentos homicidas, não me surpreende mais.” A paixão tornou-se vício e a razão e a vontade estão à sua mercê.

Neste contexto, o nobre e ambicioso homem que se tornou senhor de um reino vê-se, paradoxalmente, escravo de sua própria ambição, de suas próprias paixões. Percebendo-se como um simples títere nas mãos do destino, aquele que almejava o mais pleno e livre senhorio, depois de cumprir a sua sina, conforme a previsão e a intenção das parcas, deseja apenas a morte; única e desesperada maneira de talvez reencontrar a liberdade:

Breve candeia, apaga-te! (grita Macbeth numa das passagens mais célebres da literatura universal) Que a vida é uma sombra ambulante: um pobre ator que gesticula em cena uma hora ou duas, depois não se ouve mais; um conto cheio de bulha e fúria, dito por um louco, significando nada. (Ato V, cena 5)


Macbeth, peça de Willian Shakespeare em cinco atos pode certamente ser lida como o drama das palavras e das paixões; de como podemos fazer coisas com as palavras e, principalmente, de como as palavras podem fazer coisas conosco. Shakespeare mostra aqui a intrincada economia que existe entre as palavras e as paixões, revelando a “matéria” de que somos feitos e o “modo” como operamos. Entre logos e pathos, entre palavra e paixão, somos e nos movemos, para o Bem ou para o Mal. Cabe pois, à inteligência, à “inteligência das palavras” como escrevia Pascal (Pensamentos, 500), discernir e decidir se, efetivamente, é tudo igual.


Referências Bibliográficas:


SHAKESPEARE, Willian. Macbeth. Tradução de Manuel Bandeira. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996.


LARROSA BONDÍA, Jorge. “Notas sobre a experiência e o saber de experiência” in Revista Brasileira de Educação. No 19, Jan/Fev/Mar/Abr 2002, pp. 20-28.


PASCAL, Blaise. Pensamentos. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo, Abril Cultural, 1973. Col. “Os Pensadores” Vol. XVI.