segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Luz no pântano [1]

por Jacqueline Sakamoto
Participante do LabHum


Certa vez, um erudito resolveu fazer ironia comigo: perguntou-me: “O que é que você leu?” Respondi: “Dostoievski.” Ele queria me atirar na cara os seus quarenta mil volumes. Insistiu: “Que mais?” E eu: “Dostoievski.” Teimou: “Só?” Repeti: “Dostoievski.” O sujeito aturdido pelos seus quarenta mil volumes, não entendeu nada. Mas eis o que eu queria dizer: pode-se viver para um único livro de Dostoievski. Ou uma única peça de Shakespeare. Ou um único poema não sei de quem. O mesmo livro é um na véspera e outro no dia seguinte. Pode haver um tédio na primeira leitura. Nada, porém, mais denso, mais fascinante, mais novo, mais abismal do que a releitura.[2]


Compartilho com Berdiaeff a seguinte posição: “Desde sempre, dividiram-se para mim os homens entre os dostoievskianos e aqueles a quem o espírito de Dostoievski era estranho”[3]. E se “Há uns poucos livros totais, [...] que nos salvam ou que nos perdem.”[4] meu romance total, que permanece em minhas veias é Os Demônios[5]. Ou ainda, permanece nas “dobras da memória”[6] confundindo e trazendo luz, como o conhecido e o surpreendentemente novo, e “que nunca terminou de dizer aquilo que tinha de dizer”[7].

Com a publicação do romance Os Demônios Dostoiévski passa a ser considerado O Profeta do Niilismo antecipando o destino histórico da Rússia e voltando o espelho para o Ocidente. O Niilismo é um termo de semântica instável largamente usado na época de Dostoiévski. Descreve principalmente as ações radicais da geração de 1860 que pretendiam realizar a transformação do mundo tendo como base o materialismo, o utilitarismo e o cientificismo. Se por um lado, o sentido literal da palavra presume a ausência de todo valor ou sentido, em sua manifestação russa pela geração de 1860 toma corpo com base numa enorme fé no poder da ciência. As questões humanas eram compreendidas da mesma maneira que qualquer outra questão relativa à natureza com base nas ciências naturais. O homem passa a ser compreendido como organismo natural e não possuidor de nenhuma outra natureza que se revela por si mesma. Alexander Herzen descreveu os niilistas como sendo aqueles que aplicam os métodos de laboratório na vida. A atitude niilista buscava ainda a emancipação pessoal, sendo que, todas as instituições vistas como barreiras à realização de todo potencial individual deveriam ser destruídas. Dostoiévski não via o niilismo como um fenômeno meramente histórico, mas antes, como uma questão moral e religiosa. Nela a experiência da liberdade deve justamente passar pela semelhança com o Nada, a projeção de uma idéia de homem e de humanidade que nega a realidade do mal e do pecado leva a experiência da própria decomposição.[8]

Na virada do século XIX para o século XX surgiu no idioma russo uma nova palavra: dostoiévschina. Este vocábulo caracteriza um estado complicadíssimo da alma humana, um caso de consciência sem solução aparente para paixões, vícios, virtudes e abnegações. Chostakóvski afirma que se a pronúncia fosse mais fácil acabaria por ganhar uso universal porque Dostoiévski, e os problemas que se apresentam em seus romances, são universais.[9] E é neste sentido que se deve compreender seu realismo profundo e religioso, próprio da vida, que exprime para além da objetividade do mundo o destino interior dos humanos.


Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. [...] Mas, apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa ainda mais.[10]


Nas memórias do anti-herói do subsolo encontramos uma advertência de Dostoievski já no início da obra, o personagem é um dos representantes de sua geração que vive seus dias derradeiros. Nele encontramos toda sua crítica ao extremo racionalismo e a fé cega na mentalidade positivista e científica. A doença do homem do subsolo, que vive em seus quarenta anos, é a consciência dolorosa e forte do inevitável de sua própria condição, de onde, “[...] sim fica-se comprimido pela consciência do mingau a que nos reduziram”[11]. Sendo sua antítese a consciência do imbecil, um homem/ camundongo, uma criatura sem caráter e de ação, limitada em suas possibilidades.

O anti-herói dostoievskiano denuncia e antecipa o que existe de anti-humano na posição dos niilistas que aplicam os métodos da ciência na vida. A crença ingênua no progresso que acaba por esvaziar a existência quando prescreve calculadamente os hábitos, manias, vícios e afetos a um coeficiente comum mínimo necessário a sua planificação. Uma vida decente que em nada se diferencia de todas as outras[12]. Conspiração e terror tomam espaço na fina e complexa tessitura da vida e que tem em sua base uma Filosofia da Digestão[13]. E é sentida pela voz do subsolo como doença. Se a consciência perspicaz é sempre uma doença, que doa ainda mais.


O ser humano é o único que se falsifica. Um tigre há de ser tigre eternamente. Um leão há de preservar, até morrer, o seu nobilíssimo rugido. E assim o sapo nasce sapo e como tal envelhece e fenece. Nunca vi um Marreco que virasse outra coisa. Mas o ser humano pode, sim, desumanizar-se. Ele se falsifica e, ao mesmo tempo, falsifica o mundo[14].


“E, assim, falsários da vida, dos valores da vida, vamos fazendo as nossas poses políticas, ideológicas, literárias, religiosas, etc., etc.”[15] Existe entre Dostoievski e Nélson Rodrigues um laço de família, almas parentas, que colocam seus personagens sempre no limiar. Para além de uma existência aparentemente estéril, cinzenta e medíocre eles nos revelam realidades abissais. E será na fuga de si mesmo, de sua doença, que o homem se falsifica. Nenhum conforto é possível, de um lado a dor (da consciência que vem do subsolo), e de outro a morte em vida (a vida decente do homem/ camundongo).

No confronto com seu destino último, o homem oscilante entre suas duas naturezas, mergulha sofregamente numa nostalgia, na busca da cena de Origem: O Paraíso Perdido. Se em Nélson tal sentimento que busca desesperadamente uma espécie de retorno a uma existência integral termina no incesto[16], em Dostoievski encontramos os sonhos: do Homem Ridículo[17] e no sonho de Stavróguim[18]. Ou ainda em Machado, no desejo particular e casmurro de Bentinho[19] em reproduzir a casa onde se criou, da rua de Matacavalos no Engenho Novo, com o propósito de fincar bases para sua confissão. Neste retorno nenhuma finalidade didática deve ser identificada nos autores. Será no choque, no dilaceramento de nossas frustrações, e, sobretudo, no reconhecimento que “O personagem vive a vida que deveria ser a nossa, a vida que recusamos”[20]. Neste sentido a obra literária, ou a peça trágica, tem o poder de criar vida e não falseá-la. Quem “Nada conhece, nada sabe dos desesperos, das paixões, das agonias que a poderiam alçar à plenitude de sua condição humana.[21]”, mais finge do que vive, nada percebe de sua condição pobre e miserável. Aniquila assim toda possibilidade de uma nova e decisiva dimensão interior.

Se “a consciência da vida – é superior à vida. A ciência nos dará sabedoria, a sabedoria revelará as leis, e o conhecimento das leis da felicidade é superior à felicidade.” passaremos necessariamente a “[...] amar a si mesmos mais do que aos outros [...]”[22]. Quando um ideal de humanidade e fraternidade é assumido como guia de nossos passos o sofrimento do homem real é que fica de fora. Se a idéia de vida é maior do que a vida, a vida é falsificada. Sendo o mundo algo que só em mim se realiza, vida e mundo dependem de mim, como um atributo de minha consciência. E sendo eu dono de minha própria vida a realização plena de minha liberdade será a plena extinção do mundo, “dou-me um tiro e não há mais mundo, [...] porque vão sumir, talvez, todo esse mundo e toda essa gente – só eu é que existo”[23]. Do alto do orgulho ridículo – oposição polarizada da humildade - o homem perde-se na afirmação de si mesmo, e a atividade do discernimento é corrompida pela idolatria, pela idolatria do si mesmo e pela idolatria a sistemas de pensamentos que definem homem e mundo.[24] Ao proclamar sua autonomia partindo de abstrações desconectadas com a vida o homem torna-se um impostor de si mesmo. Uma representação mascarada e ritualística, neste horizonte só a esterilidade é possível. A figura do impostor (palavra russa usada para falsos pretendentes ao trono) traz ecos do conceito existencialista de fé falsa perpetuando a cisão entre o mundo de possibilidades teoréticas intermináveis e o mundo concreto.[25] Ou seja, perpetuando a cisão ao elevar-se ao nível de Deus o homem chegará inevitavelmente à descriação.[26]


Desvele seu orgulho e seu demônio! Acabará trinunfando, atingirá a liberdade ...

[Tíkhon, o perito em coração][27]



***


A consciência científica do homem moderno aprendeu a orientar-se em complexas condições de um “universo contingente”, não se desconcerta diante de quaisquer “indefinições”, mas sabe levá-las em conta e calculá-las. Essa consciência há muito acostumou-se ao universo einsteiniano com sua multiplicidade de sistemas de cálculo, etc. Mas no campo do conhecimento artístico continua, às vezes, a exigir a mais grosseira, a mais primitiva definição que, evidentemente, não pode ser verdadeira.[28]


No lugar das sínteses sofisticadas, porque cientificamente bem calculada, o trabalho com obras de arte não deverá levar a visões harmônicas e coesas das coisas. Os projetos utópicos e totalizantes não podem mais ser considerados desejáveis. Embora ainda presentes.[29] Ao contrário, é a originalidade que pode contrapor o que Bakhtin identifica depreciativamente na literaturologia[30], a ciência aplicada na literatura. Nele a oposição as relações mecânicas é o dialogismo: onde começa a consciência começa o diálogo, a vida é uma contraposição dialógica que compreende: a coexistência e a interação, simultaneidade e confrontação. Não há categorias genéticas nem causais, nem acabamentos ou sistemas. Enfim, chegaremos a inconclusibilidade e à precária infinitude da consciência. O sentido sério e profundo de seu trabalho pode ser assim expresso: não se pode transformar o homem vivo em objeto mudo, definido, à revelia. Nenhuma consciência se converte definitivamente em objeto da outra.[31]


O homem nunca coincide consigo mesmo. [...] a autêntica vida do indivíduo se realiza como que na confluência dessa divergência do homem consigo mesmo, no ponto em que ele ultrapassa os limites de tudo o que ele é como ser material que pode ser espiado, definido e previsto “à revelia”, a despeito de sua vontade. A vida autêntica do indivíduo só é acessível a um enfoque dialógico, diante do qual ele responde por si mesmo e se revela livremente. [...] uma verdade à revelia, transforma-se em mentira que o humilha e mortifica caso esta lhe afete o “santuário”, isto é, o “homem no homem”.[32]


O trabalho filosófico de Bakhtin, inspirado em Dostoiévski, nos diz respeito a relação entre autor e herói, Criador e criação, e, sobretudo, na relação entre seus personagens. Porém, ampliemos a questão para a dialogicidade estendida na relação da obra com seus leitores: a experiência original que as obras clássicas nos proporcionam, nunca à revelia, mas antes uma ampliação da consciência entre seres que se sabem inacabados. A obra clássica, moderna ou antiga, pode ser considerada o “equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs” [33], comporta uma relação pessoal de identificação tornando-se o seu clássico, assim como de forte rejeição e antítese.


Uma descoberta artística ocorre cada vez como uma imagem nova e insubstituível do mundo, um hieróglifo de absoluta verdade. Ela surge como uma revelação, como um desejo transitório e apaixonado de apreender, intuitivamente e de uma só vez, todas as leis deste mundo – sua beleza e sua feiúra, sua humanidade e sua crueldade, seu caráter infinito e suas limitações. O artista expressa essas coisas criando a imagem, elemento sui generis para a detecção do absoluto. Através da imagem mantém-se uma consciência do infinito: o eterno dentro do infinito, o espiritual no interior da matéria, a inexaurível forma dada.[34]


Não se sai impune deste encontro. Enquanto equivalente do universo mantém a integralidade do livro total. Que “provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe”.[35] E que é capaz de relegar ao pano de fundo o barulho de nossas atividades pragmáticas e utilitárias. Mas, jamais prescinde delas. “A idéia do infinito [...] pode ser apreendida através da arte, que torna o infinito tangível. Só se pode alcançar o absoluto através da fé e do ato criador”.[36] Assim a leitura dos clássicos já configura uma contradição com o ritmo mecânico de nossas vidas. E neste caminho acabamos sendo lidos em relação ou em oposição a ela. Tal qual as consciências dostoievskianas nos romances. Nenhuma utilidade ou fim deve ser vislumbrado no horizonte, mas antes, no lugar do dever ou do respeito esta aproximação diz respeito a uma atividade desinteressada, onde só o amor (desinteressado por definição) garante que esta relação não seja abusiva.[37] Porque “A realidade toda – escreveu Dostoiévski – não se esgota no essencial, pois, uma grande parte deste nela se encerra sob a forma de palavra futura ainda latente, não-pronunciada”. [38]


Os problemas técnicos são brincadeira de criança: pode-se aprendê-los com a maior facilidade. Pensar com independência e dignidade, porém, é muito diferente de aprender a fazer alguma coisa, ou de tornar-se uma personalidade inconfundível. Ninguém pode ser forçado a carregar um peso que não apenas é difícil, mas, às vezes, impossível de suportar. No entanto, não há outra saída: tem de ser tudo ou nada.[39]


A força provocadora das obras dispensa um operating instructions, porém, nos leva a pensar nas possibilidades de conciliação entre uma atividade criativa de leitura que não abuse da relação com a integralidade da obra e mantenha, ao mesmo tempo, uma possibilidade de trânsito original com liberdade de expressão. No prefácio de Aderbal Freire-Filho para as Peças Míticas de Nélson Rodrigues[40] encontramos a posição de um diretor de teatro, um encenador, que ao trazer sua experiência na montagem de Senhora dos Afogados escolheu dois aspectos da peça, com a intenção de ajudar o leitor a montar sua própria encenação. Um deles constitui para esta reflexão “uma frase que compromete até o infinito”[41]: “Em cena, também, os vizinhos. São figuras espectrais”.

Pensando no auxílio ao encenador/ leitor Aderbal Freire-Filho nos indica que o texto secundário da peça (escrito pelo autor) nos leva a pensarmos neles como um conjunto (vizinhos), porém, diferenciados, cada um vem de sua própria casa, tem personalidades e vidas distintas, porém: ”[...] eles tornam sua presença permanente na casa dos Drummond muito mais invasiva e expressiva e dão à irrealidade dessa presença uma dose de realismo que determina uma tensão: e a poética cênica vive de tensões.”[42]! Assim como a leitura de textos literários. Na continuidade, cada vizinho diferenciado entra em cena com sua própria casa e juntos criam o mundo que é inseparável da condição de vizinho, vila, rua, vizinhança. Porém, entram em cena com aquilo que lhes é próprio e peculiar, sem confusão nem mistura. E assim constituem no drama uma dinâmica própria entrando e saindo de cena. “Quando os dez vizinhos sentavam nas dez cadeiras em torno da grande mesa dos Drummond, o palco ganhava nova dimensão [...]”[43]. De certa maneira aqui a casa dos Drummond se torna maior que o todo, contém nela a casa, a rua, a vizinhança. Mas, apesar da presença invasiva e constante dos vizinhos o drama central da peça segue em sua integralidade, contém o todo, suporta a invasão, e permanece em sua trama original.

Neste ponto será que poderíamos suportar o peso, no tudo ou nada, de nos considerarmos vizinhos em relação a leitura da obra de arte? Vejamos.

Como vizinhos/leitores passamos a freqüentar a casa dos Drummond/ obra literária, uma presença invasiva e constante, porém, uma vez nela a casa/ obra se torna maior que o todo, comporta nossa presença que não prescinde do barulho de fundo de nossa realidade imediata, permanecendo integral em sua trama. Na indicação da época em que se passa a peça encontramos “Quando quiser”[44]. Característica marcante das obras clássicas, ou peças trágicas, onde o tempo é integral, “Não existe morte, existe imortalidade. O tempo é uno e indiviso, [...] A uma mesa sentam-se avós e netos...”.[45] E no espaço, cada um dos vizinhos/ leitores é diferenciado, entra e sai da obra carregando, ou voltando, para sua própria casa, não são personagens propriamente ditas, mas figuras espectrais, que estão em todo lugar ao mesmo tempo. Nem podem ser considerados como uma platéia, eles presenciam cenas que a platéia não vê: sobem em cadeiras e espiam por cima do biombo uma cena conjugal.

Se acrescentarmos ainda uma experiência musical, proposta por Huxley[46], onde os afetos humanos oscilam, e seus personagens majestosos e medíocres se tornam instrumentos ou melodias que se alternam numa sinfonia executada do mais profundo vazio, a impunidade é impossível. O vizinho/ leitor realiza seu Contraponto, pessoal ou em coro, avançando em cena corajosamente ou acuado num canto, são solícitos ou deslumbrados, insultam e prevêem a morte, tem gestos de ira e de maldição, mas não determinam o desfecho da obra – os personagens nada vêem, nada sentem. Arriscamos no máximo um cochicho:


Vizinho – Mas foi suicídio ou não foi?

Vizinho – Foi, sim.

Vizinho – Não foi.

Vizinho – A menina se matou.

Vizinho – Que o quê!

Vizinho – Dou-lhe a minha palavra![47]


* * *


O tema da santificação da vida humana atravessa a obra de Dostoievski, mas, chamaremos com especial atenção algumas características do personagem central de O Idiota. O Príncipe Liev Nikolaievitch Michkin é nobre de estirpe antiga, mas nada possui materialmente neste mundo. Em seu nome encontramos uma homenagem ao Conde Tolstoi, igualmente nobre Liev Nikolaievitch Tólstoi, porém Michkin significa em russo ratinho e Liev é leão. Assim temos um leão, filho de Nikolai, da estirpe ratinho. Grandeza e pequenez reunidas num só personagem. Um jovem de aparência agradável, mas que guardava no olhar algo de sereno e pesado, talvez epilepsia, e que ele próprio rejeita como denominação de loucura. A figura Michkin atravessa o romance e sua grandeza e pequenez são inapreensíveis racionalmente, sendo comum ser designado pela fortuna crítica como o personagem que ilumina por contraste. Para Dostoievski uma figura amada, crística, ou ainda, “[...] tu, príncipe, tu és um iuródiv, e Deus ama pessoas assim como tu”.[48]

Eternamente estranho e eternamente próximo e percebido como um Idiota. Michkin toca os personagens e os deixa, os devolve, a si mesmos, como em toda situação de amor - desinteressada por definição - partilhada entre seres humanos. Ele concentra em si todo o conteúdo humano trágico, sendo inacessível e indefinível jamais será apreendido em sua essência íntima, mas aqui encontramos o que a tragédia/ obra de arte nos traz de fecundidade. Voltemos a nossa condição de vizinhos/ leitores, que freqüentamos a obra/ casa dos Drummond, somos estranhos e próximos, os personagens permanecem inacessíveis à nossa invasão e ao final somos devolvidos a nós mesmos. Nesta relação desinteressada o retorno as nossas casas traz ou comporta, inclusive, que no coro, as figuras espectrais:


Os vizinhos resolvem tirar o rosto e colocar a máscara.[49]


Michkin – o Amor andando no mundo - ilumina por contraste porque nós somos escuridão. Indefiníveis, conflitantes, contraditórios e polarizados. Num retorno único e original que pode fazer frente à falsidade da vida mecânica e prescrita,


Apenas um homem sabe que a felicidade e tormento são a mesma coisa, em todas as experiências mais intensas e em todos os momentos fecundos da vida: é o criador. Mas muito antes dele, um ser humano atingido pelo amor estendeu, suplicante, suas mãos para uma estrela, sem se perguntar se era prazer ou dor que implorava dela ...[50]


Assim, sendo o homem o único que se falsifica melhor lançar alguma luz, ainda que:


O vizinho põe uma máscara hedionda que, na verdade, é a sua face autêntica.[51]



Julho de 2010



Notas:



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[1] Referência, ou reverência, a frase “Meus dramas são como a luz cruel do sol caindo sobre um pântano”. RODRIGUES, Nélson. Teatro Completo de Nélson Rodrigues: Peças Míticas. v.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 277.

[2] RODRIGUES, Nélson. O Óbvio Ululante: as primeiras confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 54.

[3] BERDIAEFF, Nicolai. O Espírito de Dostoiévski. Trad. Otto Schneider. Rio de Janeiro: Editora Panamericana, [194-?], p. 5.

[4] RODRIGUES, Nélson. O Óbvio Ululante: as primeiras confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 54.

[5] Cf. DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Mikháilovitch. Os Demônios. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2004.

[6] CALVINO, Ítalo. Por que ler os Clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 11.

[7] CALVINO, Ítalo. Por que ler os Clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 11.

[8] Cf. Kenneth LANTZ, The Dostoevsky Encyclopedia apud SAKAMOTO, Jacqueline Izumi. Religião e Niilismo: Paidéia Crítica em Os Demônios de Dostoievski. 2007. 143f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUCSP, São Paulo, p. 36, nota 54.

[9] Cf. Paulo CHOSTAKOWSKY, História da Literatura Russa: desde as origens até nossos dias apud SAKAMOTO, Jacqueline Izumi. Religião e Niilismo: Paidéia Crítica em Os Demônios de Dostoievski. 2007. 143f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUCSP, São Paulo, p. 37, nota 58.

[10] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Mikháilovitch. Memórias do Subsolo. Trad. Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 15.

[11] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Mikháilovitch. Memórias do Subsolo. Trad. Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 21.

[12] Cf. TOLSTÓI, Lev. A Morte de Ivan Ilitch. Trad. Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2009.

[13] DOSTOEVSKY, Fyodor. The Notebooks for The Possessed. Edited by Edward Wasiolek. Translated by Victor Terras. Chicago: The University of Chicago, 1968, p. 253.

[14] RODRIGUES, Nélson. O Óbvio Ululante: as primeiras confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 93.

[15] RODRIGUES, Nélson. O Óbvio Ululant,e: as primeiras confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 93.

[16] Cf. análise de Pompeu de Sousa: “São tão falsamente incestuosas, suas personagens, quanto as do Gênese. Porque o homem de Nélson Rodrigues, como o do Gênese, é a criatura diante do mundo; e a sua família é a “única e primeira” [...] da qual o “amor e o ódio teriam de nascer”. In: RODRIGUES, Nélson. Teatro Completo de Nélson Rodrigues: Tragédias Cariocas I. v.3. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 262, Apêndice.

[17] Cf. DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Mikháilovitch. Duas Narrativas Fantásticas: A Dócil e O Sonho de um Homem Ridículo. Trad. Vadim Nikitin. São Paulo: Editora 34, 2003.

[18] Cf. DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Mikháilovitch. Os Demônios. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2004.

[19] Cf. ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Porto Alegre: L&PM, 2010.

[20] Nélson Rodrigues obre Senhora dos Afogados: RODRIGUES, Nélson. Teatro Completo de Nélson Rodrigues: Peças Míticas. v.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 297, Apêndice.

[21] Nélson Rodrigues obre Senhora dos Afogados: RODRIGUES, Nélson. Teatro Completo de Nélson Rodrigues: Peças Míticas. v.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 297, Apêndice.

[22] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Mikháilovitch. Duas Narrativas Fantásticas: A Dócil e O Sonho de um Homem Ridículo. Trad. Vadim Nikitin. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 119.

[23] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Mikháilovitch. Duas Narrativas Fantásticas: A Dócil e O Sonho de um Homem Ridículo. Trad. Vadim Nikitin. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 100.

[24] Cf. BERDYAEV, Nikolai. Slavery and Freedom. New York: Charles Scribner’s Sons, 1944.

[25] Cf. COATES, Ruth. Cristianity in Bakhtin: God and the exiled author. New York: Cambridge University Press, 2005. (Cambridge Studies in Russian Literature), pp. 30-31.

[26] Cf. EVDOKIMOV, Paul. Dostoïevski et le problème du mal. Paris: Desclée De Brouwer, 1978.

[27] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Mikháilovitch. Os Demônios. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 686.

[28] BAKHTIN, Mikhail. O Problema da Poética em Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p. 275.

[29] Cf. RIBEIRO, Renato Janine (Org.). Humanidades: um novo curso na USP. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.

[30] Cf. Em Torno a una Conversación. Entrevista concedida a Sergei Georgievitc Bocharov. In: ZAVALA, Íris (Coord.) M. Bajtin y sus Apócrifos. Barcelona: Anthropos; San Juan de Puerto Rico: Ed. De la Universidad de Puerto Rico, 1996, pp. 73-116. (Biblioteca A, Artes-Literatura, 24).

[31] Cf. BAKHTIN, Mikhail. O Problema da Poética em Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

[32] BAKHTIN, Mikhail. O Problema da Poética em Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p. 59.

[33] Cf. CALVINO, Ítalo. Por que ler os Clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 13.

[34] TARKOVSKIAEI, Andreaei Arsensevich. Esculpir o Tempo: Tarkovski. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 40.

[35] CALVINO, Ítalo. Por que ler os Clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 12.

[36] TARKOVSKIAEI, Andreaei Arsensevich. Esculpir o Tempo: Tarkovski. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 42.

[37] Sobre esta questão penso no amor autosacrificial, base da reflexão na Estética Teológica que Bakhtin desenvolve sobre Dostoievski.

[38] BAKHTIN, Mikhail. O Problema da Poética em Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p. 89.

[39] TARKOVSKIAEI, Andreaei Arsensevich. Esculpir o Tempo: Tarkovski. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 148.

[40] Cf. RODRIGUES, Nélson. Teatro Completo de Nélson Rodrigues: Peças Míticas. v.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, pp. 15-26.

[41] RODRIGUES, Nélson. O Óbvio Ululante: as primeiras confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 48.

[42] RODRIGUES, Nélson. Teatro Completo de Nélson Rodrigues: Peças Míticas. v.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 21.

[43] RODRIGUES, Nélson. Teatro Completo de Nélson Rodrigues: Peças Míticas. v.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 21.

[44] RODRIGUES, Nélson. Teatro Completo de Nélson Rodrigues: Peças Míticas. v.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 207.

[45] TARKOVSKIAEI, Andreaei Arsensevich. Esculpir o Tempo: Tarkovski. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.9.

[46] HUXLEY, Aldous. Contraponto. Trad. Erico Veríssimo, Leonel Vallandro. São Paulo: Editora Globo, 2006.

[47] RODRIGUES, Nélson. Teatro Completo de Nélson Rodrigues: Peças Míticas. v.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 212.

[48] Iuródiv, referência a figura do Louco por Cristo, uma mistura de andarilho, louco e santo. DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Mikháilovitch. O Idiota. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 33.

[49] RODRIGUES, Nélson. Teatro Completo de Nélson Rodrigues: Peças Míticas. v.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 234.

[50] ANDREAS-SALOMÉ, Lou. Reflexões sobre o Problema do Amor e O Erotismo. Trad. Daniel Abreu. São Paulo: Landy Editora, 2005, p. 47.

[51] RODRIGUES, Nélson. Teatro Completo de Nélson Rodrigues: Peças Míticas. v.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 217.