quarta-feira, 26 de maio de 2010

A Cultura Contemporânea na Clínica de Bento XVI: as patologias da modernidade e a terapêutica da humanização.

[1]

Dante Marcello Claramonte Gallian

Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde (CeHFi) da UNIFESP.

Bento XVI e a Humanização

Já faz algum tempo que um dos temas que mais me tem ocupado, enquanto pesquisador e professor universitário, é o da humanização. Sendo historiador de formação e trabalhando há mais de uma década numa escola de Medicina, acabei me defrontando com esta questão candente que, formulada de maneira especial na área da saúde, começa se projetar, inevitavelmente, para todos os campos do saber, apresentando-se como um dos grandes desafios da cultura contemporânea.

Ambientado, por um lado, no contexto problemático dos controversos programas de humanização e incitado, por outro, por experiências interpelativas a partir da leitura, fruição e reflexão de clássicos da literatura com estudantes e profissionais da saúde, fui me dando conta de como as humanidades (a filosofia, as artes, a literatura...) acabam por se revelar um meio privilegiado e eficaz de humanização. E este, portanto, tem sido, nos últimos anos, o meu objeto de experiência e investigação: as humanidades, a formação humanística e a humanização no contexto da universidade, particularmente no campo da saúde.

Ao receber o convite da UNISAL para falar sobre “Bento XVI e a Cultura Contemporânea” em seu Simpósio de Teologia, aceitei-o, confesso, com desculpável oportunismo. Intuía, a partir de experiências anteriores com o magistério do papa Bento XVI, que talvez, uma leitura mais profunda, abrangente e sistemática de seus textos, seria de muito proveito para minha reflexão pessoal e para o meu projeto de pesquisa. E efetivamente: não só intuí corretamente, como esta nova experiência acabou por superar minhas expectativas. A leitura dos documentos do magistério de Bento XVI sobre a questão da cultura contemporânea, não apenas veio ao encontro das reflexões teóricas e experiências empíricas que venho desenvolvendo (fortalecendo-as portanto), como também abriu novos horizontes de reflexão, contribuindo enormemente para uma ampliação do escopo de minha pesquisa. Neste sentido quero, antes de tudo, agradecer a grande oportunidade proporcionada por este providencial convite.

Pode parecer estranho, à primeira vista, como um conjunto de documentos que configuram o magistério de um papa pode não apenas inspirar, mas também contribuir de forma efetiva para o desenvolvimento de um projeto de pesquisa acadêmico sobre a humanização na área da saúde. Tal estranheza, entretanto, se efetivamente existe, deve-se a um preconceito típico dos ambientes acadêmicos modernos e que se explica justamente por um fenômeno descrito pelo próprio Bento XVI: o estreitamento da razão[2] – noção que retomarei mais adiante e que consiste, sumariamente, na limitação auto-decretada da razão, fundamentada “numa síntese entre platonismo (cartesianismo) e empirismo, que o sucesso técnico confirmou.”[3] Constituindo-se no próprio fundamento do pensamento científico moderno, tal perspectiva de razão, associada com outros elementos característicos do ethos acadêmico atual, rejeita categoricamente todo tipo de “conhecimento” que não se adeque aos seus pressupostos teóricos e, principalmente, aos modismos intelectuais do momento. Assim, idéias advindas de um universo não cartesiano e não empirista (ainda que a própria academia, em alguns âmbitos, considere-se pós-cartesiana e anti-positivista) e, principalmente, procedentes de uma mente religiosa (e, pior ainda, de um papa!) são, de acordo com esta lógica da universidade moderna, indiscriminadamente desqualificados. E é, portanto, esta mesma postura auto-limitada que vigora no contexto acadêmico que acaba por asfixiá-lo e desumanizá-lo, fazendo com que a universidade contemporânea perca, muitas vezes, a oportunidade de contribuir de forma efetiva para o desafio da humanização.

O magistério de Bento XVI, além de abrir perspectivas mais amplas sobre a condição humana a partir da experiência do religioso (dimensão inegável desta mesma condição humana), apresenta uma abordagem significativa para a discussão da cultura contemporânea, por se assentar numa base filosófica extremamente séria e sólida; fruto do amadurecimento de um professor de filosofia de reconhecida competência, considerado um dos maiores pensadores vivos da atualidade, num sentido amplo, que transcende o âmbito teológico-religioso.

Diante do desafio que se descortina hoje, o de reestruturar a universidade e a atividade acadêmica frente à ameaça implacável da desumanização da cultura e do homem, recorrer a uma perspectiva que venha no sentido de ampliar o escopo e a lógica da razão apresenta-se como algo oportuno e desejável. Neste sentido, o pensamento de Bento XVI, através também de seu “magistério” configura-se como uma contribuição nada desprezível. E o mergulho sério e despreconceituoso neste conjunto de documentos confirmam tal noção.

O Pensamento “Clínico” de Bento XVI e o Diagnóstico da Desumanização

Como sistematizar o pensamento de Bento XVI? Sugiro uma lógica que se poderia qualificar de clínica. A prática médica estabeleceu desde suas origens um itinerário composto de várias etapas. Como excelente médico, Bento XVI, seguindo um itinerário eminentemente iátrico, debruça-se sobre o mundo atual, que sofre de um mal cultural, analisa a sintomatologia (a identificação dos sinais e sintomas patológicos da nossa cultura), diagnostica as causas da patologia e, por fim, prescreve uma intervenção terapêutica, capaz de promover a saúde - que, no caso da cultura, seria a sua humanização.

Em diversas intervenções e discursos, Bento XVI, ao se referir às manifestações mais marcantes da cultura contemporânea, o faz, precisamente, como sintomas de um contexto patológico. Concomitantemente com os inegáveis progressos no campo científico-tecnológico e no econômico-social, o homem da civilização pós-moderna experimenta, paradoxalmente, um sentimento de solidão e abandono[4], característico do nosso mundo globalizado. Se, por um lado, as desigualdades e a exploração econômica explicam a desolação de milhões, por outro, a carência de valores e sentido de vida acabam por lançar outra importante parcela da humanidade na “angústia que conduz ao desespero.”[5]

No texto do discurso que pretendia ler durante sua visita à Universidade “La Sapienza” de Roma, em janeiro de 2008[6], Bento XVI, citando Santo Agostinho, retoma uma idéia que traduz, de maneira emblemática, um dos sintomas mais característicos de nosso contexto patológico: a reciprocidade entre scientia e tristitia – entre ciência e tristeza. O simples saber, dizia o bispo de Hipona, deixa-nos tristes. “E realmente – completa o papa – quem se limita a ver e apreender tudo aquilo que acontece no mundo, acaba por ficar triste.”[7]

Ao instrumentalizar o conhecimento e abrir mão da busca da verdade, das questões essenciais da existência humana, o homem moderno esvaziou a ciência do seu conteúdo fundamental e, se por um lado, isso o permitiu ir muito longe do ponto de vista das conquistas técnicas, por outro, o afastou tremendamente de si mesmo, levando-o a uma “zona de dessemelhança” – a regio dissimilitudinis de Santo Agostinho[8]. Como explica Bento XVI:

Agostinho tomara esta palavra da filosofia platônica para caracterizar o seu estado interior antes da conversão (cf. Confissões, VII 10.16): o homem, que é criado à semelhança de Deus, em conseqüência do seu abandono de Deus precipita na "zona da dessemelhança" - num afastamento de Deus tal que já não O reflete mais, tornando-se assim dessemelhante não apenas de Deus, mas também de si próprio, do verdadeiro ser homem.[9]

Dessemelhante a si mesmo, o homem acaba por perder aquilo que lhe é próprio. Nas palavras do próprio papa: “a perda daquilo que é humano no homem.”[10] Chegamos pois, ao diagnóstico da patologia que acomete o homem contemporâneo: a desumanização.

Em certa medida, as causas desta patologia já foram sumariamente apontadas na própria caracterização de seus sintomas: a tristeza, por exemplo, como resultado de uma ciência desvinculada da verdade; o desespero, como resultado da precipitação na “zona de dessemelhança”... Para se chegar, porém, a um diagnóstico mais completo, necessário para que se delineie um prognóstico coerente e um tratamento eficaz é preciso, segundo Bento XVI, explorar suas causas mais profundas, investigando suas raízes históricas. Compreendendo a desumanização do homem contemporâneo como uma patologia característica da Modernidade, fruto, na verdade, da sua crise, nada mais adequado, portanto, do que iniciar esta abordagem a partir “de um estudo compreensivo” sobre esta mesma crise:

Nos últimos séculos, a cultura européia tem sido poderosamente condicionada pela noção de modernidade. Contudo, a presente crise tem menos a ver com a insistência da própria modernidade a respeito da centralidade do homem e das suas solicitudes, do que com os problemas levantados por um "humanismo" que reivindica a construção de um regnum hominis desvinculado do seu necessário fundamento ontológico. Uma falsa dicotomia entre o teísmo e o autêntico humanismo, impelido ao extremo de criar um conflito irreconciliável entre a lei divina e a liberdade humana, tem levado a uma situação em que a humanidade, em virtude de todos os seus progressos econômicos e técnicos, se sente profundamente ameaçada. Como afirmava o meu Predecessor, Papa João Paulo II, temos necessidade de nos interrogarmos: "se o homem, enquanto homem, no contexto deste progresso, se torna verdadeiramente melhor, isto é, mais amadurecido espiritualmente, mais consciente da dignidade da sua humanidade, mais responsável, mais aberto aos outros" (Redemptor hominis, 15). O antropocentrismo que caracteriza a modernidade nunca pode desvincular-se do reconhecimento de toda a verdade acerca do homem, o que inclui também a sua vocação transcendente.[11]

A crise da Modernidade, realidade plenamente perceptível na contemporaneidade através da derrocada das utopias, da desesperança e da própria desumanização da cultura, só pode ser efetivamente compreendida quando se reconhece, como bem aponta Bento XVI, o equívoco antropológico que se delineou nas suas raízes, nas suas origens. O antropocentrismo moderno, ao reduzir o homem como medida suficiente de si mesmo e, de maneira particular, na dimensão da sua razão (no sentido também moderno do termo), armou como que uma armadilha para si próprio, fechando as portas para outras dimensões da existência e do entendimento, e estabeleceu assim, sem querer, os fundamentos da desumanização que hoje se vive.

Tal realidade patológica pode ser percebida de forma emblemática, segundo Bento XVI, naquilo que ele chama de auto-limitação moderna do conceito de razão:

No fundo, temos a auto-limitação moderna da razão, com a sua expressão clássica nas «críticas» de Kant, mas ulteriormente radicalizada pelo pensamento das ciências naturais. Em poucas palavras, este conceito moderno da razão baseia-se numa síntese entre platonismo (cartesianismo) e empirismo, que o sucesso técnico confirmou. Por um lado, pressupõe-se a estrutura matemática da matéria, por assim dizer a sua racionalidade intrínseca, que torna possível compreendê-la e usá-la na sua eficácia operacional: este pressuposto básico é, por assim dizer, o elemento platônico no conceito moderno da natureza. Por outro lado, trata-se da utilização funcional da natureza para as nossas finalidades, onde só a possibilidade de controlar verdade ou falsidade através da experiência é que fornece a certeza decisiva. O peso entre os dois pólos pode, segundo as circunstâncias, oscilar para um lado ou outro.[12]

Assim, apenas a certeza que deriva da sinergia entre matemática e experiência nos permite falar de cientificidade. “Tudo o que pretenda ser ciência – continua o papa – deve conformar-se com este critério.”[13] E, por outro lado, tudo o que transcende esta possibilidade de aferição “científica” estaria portanto no campo do a-científico ou pré-científico, tal como o problema de Deus e das questões existenciais e religiosas do homem. Ora, tal auto-limitação do conceito de razão e de ciência determina a larga um estado de cisão que acaba por redundar no desvirtuamento da razão em racionalismo e da ciência em cientificismo, principais agentes patológicos na crise desumanizadora que caracteriza a pós-modernidade. Em sua busca por construir um humanismo efetivamente autônomo, tendo como fundamento apenas a si mesmo e sua própria razão, o homem moderno, concomitantemente com as grandes conquistas científico-tecnológicas, próprias de quem se estabelece como dominador da natureza, desencadeou uma dinâmica patológica profundamente desumanizadora que hoje o ameaça e o desafia.

A Terapêutica Humanizadora

Estabelecido o diagnóstico, o raciocínio clínico de Bento XVI nos leva ao passo seguinte: a terapêutica. Tendo identificado as causas da patologia na crise da modernidade, ou seja, na própria dinâmica auto-centrada e auto-limitada de seus pressupostos antropológicos e de seus conceitos de razão e ciência, o papa, com coerência clínica, depreende que a ação terapêutica está na inversão da dinâmica patológica; ou seja, frente à auto-limitação e à auto-centralização, a abertura, a busca por ir ao encontro do outro, a descentralização. Concretamente, o remédio receitado pelo papa é o da ampliação ou alargamento do conceito de razão.

Em seu célebre discurso na Universidade de Regensburg, onde este tema aparece como elemento central, Bento XVI colocava:

Portanto, a intenção não é retirada, nem crítica negativa; pelo contrário, trata-se de um alargamento do nosso conceito de razão e do seu uso. Porque, juntamente com toda a alegria face às possibilidades do homem, vemos também as ameaças que resultam destas mesmas possibilidades e devemos perguntar-nos como poderemos dominá-las. Consegui-lo-emos apenas se razão e fé voltarem a estar unidas duma forma nova; se superarmos a limitação autodecretada da razão ao que é verificável na experiência, e lhe abrirmos de novo toda a sua amplitude.[14]

Um ano mais tarde, no discurso proferido aos participantes do Primeiro Encontro Europeu de Professores Universitários, intitulado “Um novo humanismo para a Europa. O papel das universidades”, Bento XVI retoma esta mesma noção terapêutica, afirmando:

Uma segunda questão está relacionada com a abertura da compreensão que temos acerca da racionalidade. O correto entendimento dos desafios apresentados pela cultura contemporânea e a formulação de respostas significativas a tais desafios devem aproximar-se de maneira crítica das tentativas insuficientes e, em última análise, irracionais de limitar a finalidade da razão. Pelo contrário, o conceito de razão tem necessidade de ser "ampliado", para ser capaz de explorar e de incluir os aspectos da realidade que vão além daquilo que é puramente empírico. Isto há de permitir uma abordagem mais frutuosa e complementar da relação entre fé e razão. O nascimento das universidades européias foi fomentado pela convicção de que a fé e a razão devem cooperar na busca da verdade, cada uma respeitando a natureza e a autonomia legítima da outra, mas trabalhando em conjunto, harmoniosa e criativamente, em vista da realização de cada pessoa humana na verdade e no amor.[15]

Na prática, a aplicação da terapêutica do alargamento ou ampliação do conceito de razão exige o desenvolvimento de uma visão interdisciplinar do conhecimento, que não apenas busque harmonizar as diversas ciências que se apresentam no cenário atual, como também e principalmente, que incorpore outras dimensões da experiência humana, como as da e da sabedoria.

O homem - discursava o papa na Pontifícia Academia das Ciências – não pode depositar na ciência e na tecnologia uma confiança tão radical e incondicional, a ponto de acreditar que o progresso científico e tecnológico consegue explicar tudo e suprir completamente todas as suas necessidades existenciais e espirituais. A ciência não pode substituir a filosofia e a revelação, oferecendo uma resposta exaustiva às interrogações mais radicais do homem: perguntas a respeito do significado da vida e da morte, dos valores últimos e da natureza do próprio progresso. Por este motivo, depois de ter reconhecido os benefícios adquiridos pelos progressos científicos, o Concílio Vaticano II recordou que "os métodos de investigação próprios destas ciências são erroneamente assumidos como regra suprema da investigação de toda a verdade", e acrescentou que "pode temer-se que o homem, demasiado orgulhoso das descobertas atuais, venha a pensar que se basta a si mesmo e que não precisa de procurar valores mais altos" (Ibid., n. 57).[16]

A finalidade da razão humana não se restringe em compreender o funcionamento ou mecanismo da natureza para que dela possa o homem se apoderar e tirar-lhe proveito. A razão deve estar aberta e voltada para “procurar valores mais altos”, para ir em busca da verdade, das questões essenciais da existência humana e, para tanto, deve lançar mão da teologia, da filosofia e das humanidades (das artes, da literatura) não apenas como disciplinas auxiliares, mas como fontes de efetivo conhecimento. Conhecimento este que não se limita à dimensão teórica, mas que se desdobra em sabedoria, em “saber-viver”.

É nesse âmbito, portanto, que se percebe como a ampliação ou alargamento do exercício da razão tem um efeito efetivamente terapêutico neste contexto: ela configura um movimento humanizador. “A pesquisa científica – colocava o papa em discurso na Universidade de Pávia – tende para o conhecimento, enquanto a pessoa precisa também da sabedoria, isto é, daquela ciência que se expressa no ‘saber-viver’.”[17] Ampliar não apenas o conceito mas o próprio movimento do pensar acaba por desencadear um processo de ampliação do próprio ser humano, não apenas do ponto de vista intelectual, mas antes integral, envolvendo a inteligência, o coração e a vontade. Eis o Novo Humanismo que estimula e orienta esta terapêutica humanizadora que propõe Bento XVI.

Espaço e Agentes Terapêuticos

Na dinâmica do raciocínio iátrico clássico, há uma associação direta e necessária entre terapêutica e dieta. E esta última não se limitava, como hoje se pensa, em simples disciplina alimentar. Na lógica hipocrática, fundamento do pensamento médico ocidental, a dieta abarca não apenas o âmbito da nutrição, mas tudo o que se relaciona com o viver humano: o ar que se respira, o lugar em que se habita, as idéias, pensamentos e costumes que ocupam e orientam a mente. Neste sentido, a terapêutica exige, obrigatoriamente, um tempo e um espaço convenientes, assim como agentes adequados para se efetivar.

Projetando, mais uma vez, este raciocínio para o pensamento e magistério de Bento XVI, verifica-se que na terapêutica humanizadora por ele proposta, o espaço conveniente e mesmo privilegiado para a sua efetivação é, sem dúvida, o espaço da Universidade.

Penso que se possa afirmar – colocava o papa no texto do discurso que seria proferido na Universidade de Roma – que a verdadeira e íntima origem da universidade esteja na sede de conhecimento, que é própria do homem. Este quer saber o que é tudo aquilo que o circunda. Quer a verdade. Neste sentido, podemos ver o questionar-se de Sócrates como o impulso do qual nasceu a universidade ocidental.[18]

Impulsionado por esta “sede de conhecimento” o homem que instintivamente procura “ampliar o seu conceito de razão”, acaba por querer abarcar o próprio universo, através do caminho do questionamento, da crítica, da pesquisa, do debate. Eis, segundo Bento XVI, o espírito que plasmou a universitas studiorum da Idade Média e que, em grande medida, estabeleceu as bases do autêntico humanismo, promotor de uma efetiva via de humanização.

Se é verdade que as grandes universidades, que na Idade Média nasciam em toda a Europa, tendiam com confiança para o ideal da síntese de todos os saberes, isto estava sempre ao serviço de uma autêntica humanitas, ou seja, de uma perfeição do indivíduo no interior da unidade de uma sociedade bem ordenada.[19]

Afetadas de maneira especial pela visão moderna de razão e ciência – visão esta que, paradoxalmente, elas próprias ajudaram a gestar – as universidades, em grande medida, foram perdendo esta feição humanística, para se tornarem muitas vezes apenas centros de formação profissional e de desenvolvimento de pesquisa científica. Esvaziadas de seu conteúdo essencial, as universidades modernas apresentam-se assim como fomentadoras da própria patologia da desumanização. Como denuncia Bento XVI:

Não é porventura verdade que com frequência hoje no mundo a prática da razão e a pesquisa acadêmica são obrigadas — de modo subtil e por vezes nem tanto subtil — a resignar-se às pressões de grupos de interesses ideológicos e à ilusão de objetivos utilitaristas a curto prazo ou apenas pragmáticos? Que poderia acontecer, se a nossa cultura se tivesse que construir a si mesma unicamente sobre argumentos que estão na moda, com escassa referência a uma tradição intelectual histórica genuína ou sobre as convicções que são promovidas com muito ruído e fortemente financiadas?[20]

Neste sentido, para que a universidade volte a ser o espaço adequado e privilegiado da promoção do humano, é preciso que ela se reencontre com sua vocação histórica, abrindo-se novamente para o universal, não apenas numa perspectiva meramente física ou científica, mas também e principalmente na perspectiva metafísica e sapiencial. Recorrendo mais uma vez ao texto de Bento XVI:

Há que ser reconquistada a idéia de uma formação integral, baseada sobre a unidade do conhecimento radicado na verdade. Isto pode contrastar a tendência, tão evidente na sociedade contemporânea, para uma fragmentação do saber. Com o crescimento maciço da informação e da tecnologia nasce a tentação de separar a razão da busca da verdade. Mas a razão, quando é separada da orientação humana fundamental para a verdade, começa a perder a própria direção. Ela acaba por se tornar insensível sob a aparência de modéstia, quando se contenta com o que é puramente parcial ou provisório, ou sob a aparência de certeza, quando impõe a capitulação às exigências de quantos dão de maneira indiscriminada igual valor praticamente a tudo.[21]

A universidade deve, portanto, ser o espaço privilegiado que se abre e que se apresenta como lugar do exercício da reflexão, do questionamento, da procura da verdade; como lugar que acolhe e que, de certa forma, corresponde a essa sede, a essa ânsia de conhecimento da verdade, própria do homem e que se manifesta com especial força no jovem.

Deve ser assim também hoje: quando a compreensão da plenitude e unidade da verdade é despertada nos jovens, eles sentem o prazer de descobrir que a pergunta sobre o que eles podem conhecer lhes abre o horizonte da grande aventura sobre como devem ser e sobre o que devem realizar.[22]

Assim, a universidade como espaço de humanização, de construção de um Novo Humanismo, deve ser o espaço em que as questões essenciais da existência humana, como o viver bem, o morrer, o bem, o mal, o belo, estejam colocadas e que possam ser racionalmente desenvolvidas, com rigor lógico e seriedade, sem preconceitos racionalistas e cientificistas. Pois, como lembra Bento XVI, “desde os tempos de Platão, a educação não consiste no mero acúmulo de conhecimentos ou de habilidades, mas numa paideia, uma formação humana nas riquezas de uma tradição intelectual finalizada a uma vida virtuosa.”[23]

Em suma, para que se cumpra o seu efetivo papel de espaço terapêutico de humanização, é preciso que a universidade se constitua em um verdadeiro laboratório de cultura, em que professores e estudantes trabalhem em conjunto, “investigando temas de particular importância para a sociedade, recorrendo a métodos interdisciplinares e contando com a colaboração dos teólogos.”[24] quest os professores e os estudantes trabalhem em conjunto, investigando

Por fim, complementando o quadro “clínico” apresentado por Bento XVI em seu recente magistério sobre a questão da cultura contemporânea e o desafio da sua humanização, aparece, como elemento essencial o agente terapêutico. Havendo delineado o ambiente, o espaço adequado e privilegiado para a promoção da humanização, a Universidade, o papa indica também o agente privilegiado que deve atuar no interior deste ambiente: o educador. Mas aqui, tal como se mostrou acima no caso da Universidade (em que um reencontro com sua vocação histórica se faz indispensável), observa-se também a necessidade de se especificar as qualidades e o espírito que deve animar este agente privilegiado. E aqui, novamente, Bento XVI recorre a Santo Agostinho, como figura referencial e modelar:

Santo Agostinho era um homem animado por um desejo incansável de encontrar a verdade, de encontrar o que é a vida, de saber como viver, de conhecer o homem. (...) Assim a fé em Cristo não pôs fim à sua filosofia, à sua audácia intelectual, mas ao contrário, estimulou-o ulteriormente a procurar as profundezas do ser homem e a ajudar os outros a viver bem, a encontrar a vida, a arte de viver. Isto era para ele a filosofia: saber viver com toda a razão, com toda profundidade do nosso pensamento, da nossa vontade, e deixar-se guiar pelo caminho da verdade, que é um caminho de coragem, de humildade, de purificação permanente.[25]

Aliando a perspectiva da pesquisa rigorosa, do raciocínio amplo e comprometido com a verdade, com a busca por “encontrar a vida, a arte de viver” e, ao mesmo tempo, com o desejo de “ajudar os outros a viver bem”, Santo Agostinho apresenta-se como figura emblemática deste agente terapêutico indispensável para a humanização da cultura. Ele, na verdade, encarna a própria vivência da caridade intelectual, virtude fundamental que qualifica e deve animar este agente terapêutico humanizador, o intelectual-educador do Novo Humanismo que propõe Bento XVI.

A caridade intelectual é o ingrediente facilitador e propiciador do caminho para aqueles que têm fome e sede de conhecimento, de verdade e de humanização.

Estes perigosos desenvolvimentos põem em evidência a urgência particular daquilo a que poderíamos chamar "caridade intelectual". Este aspecto da caridade exige que o educador reconheça que a profunda responsabilidade de guiar os jovens à verdade é unicamente um ato de amor. Na realidade, a dignidade da educação reside na promoção da verdadeira perfeição e a alegria de quantos devem ser guiados. Na prática, a "caridade intelectual" apóia a essencial unidade do conhecimento contra a fragmentação que deriva quando a razão está separada da perseguição da verdade. Isto guia os jovens para a profunda satisfação de exercer a liberdade em relação à verdade, e leva a formular a relação entre a fé e os vários aspectos da vida familiar e civil. Quando a paixão pela plenitude e pela unidade da verdade for despertada, os jovens certamente apreciarão a descoberta que a questão sobre o que eles podem conhecer os abre para a vasta aventura do que eles deveriam fazer. Então eles experimentarão "em quem" e "no que" é possível esperar e sentir-se-ão inspirados a dar a sua contribuição à sociedade de uma forma que gera esperança nos outros.[26]

Dirigindo-se primeiramente ao homem de fé, ao cristão católico, e tendo como foco a universidade católica, o magistério do papa Bento XVI apresenta-se, entretanto, como um convite aberto a todos aqueles – educadores, intelectuais, acadêmicos – que reconhecendo a feição patológica que apresenta a cultura contemporânea, vislumbram na ampliação do conceito de razão e na caridade intelectual um “recurso terapêutico” válido e eficiente na busca pela saúde da humanidade. Neste sentido, o magistério de Bento XVI sobre a cultura contemporânea traz subsídios valiosos para todo aquele que se preocupa com o tema da humanização.



[1] Texto elaborado a partir da fala realizada no Simpósio de Teologia da UNISAL no dia 19 de março de 2010, cujo título original era: “Bento XVI e a Cultura Contemporânea: desafios e esperanças para a cultura cristã”. Agradeço especialmente a atenta e inspiradora cooperação do Prof. Francisco Catão, que revisou os originais e sugeriu complementações muito pertinentes.

[2] Bento XVI. Fé, Razão e Universidade: recordações e reflexões. Discurso do Santo Padre na Aula Magna da Universidade de Regensburg durante Encontro com os Representantes das Ciências em 12 de setembro de 2006. Acessado pela web: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2006/september/documents/hf_ben-xvi_spe_20060912_university-regensburg_po.html

[3] Idem.

[4] Cf. Encontro com o mundo da cultura no Collège des Bernardins. Viagem Apostólica à França por Ocasião do 150º Aniversário das Aparições de Lourdes. Paris, 12 de setembro de 2008. Acessível em http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2008/september/documents/hf_ben-xvi_spe_20080912_parigi-cultura_po.html

[5] Bento XVI, Discurso durante visita à Pontifícia Universidade Gregoriana. Roma, 3 de novembro de 2006. Acessível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2006/november/documents/hf_ben-xvi_spe_20061103_gregoriana_po.html

[6] Acessível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2008/january/documents/hf_ben-xvi_spe_20080117_la-sapienza_po.html

Previsto para ocorrer no dia 17 de janeiro de 2008, o encontro na referida universidade foi, sem embargo, cancelado pelos próprios responsáveis pelo convite.

[7] Idem.

[8] Mais uma vez o papa se apóia num conceito agostiniano.

[9] Encontro com o mundo da cultura no Collège des Bernardins. Op. Cit.

[10] Discurso aos participantes na Assembléia Plenária da Pontifícia Academia das Ciências. Vaticano, 6 de novembro de 2006. Acessível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2006/november/documents/hf_ben-xvi_spe_20061106_academy-sciences_po.html

[11] Discurso aos participantes no 1º Encontro Europeu de Professores Universitários. Vaticano, 23 de junho de 2007. Acessível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2007/june/documents/hf_ben-xvi_spe_20070623_european-univ_po.html

[12] Bento XVI. Fé, Razão e Universidade: recordações e reflexões. Discurso do Santo Padre na Aula Magna da Universidade de Regensburg durante Encontro com os Representantes das Ciências em 12 de setembro de 2006. Op. Cit.

[13] Idem.

[14] Idem

[15] Discurso aos participantes no 1º Encontro Europeu de Professores Universitários. Vaticano, 23 de junho de 2007. Op.cit.

[16] Bento XVI, Discurso aos participantes na Assembléia Plenária da Pontifícia Academia das Ciências, 6 de novembro de 2006. Op. Cit.

[17] Bento XVI, Discurso durante encontro com a comunidade da Universidade de Pavia. 22 de abril de 2007. Acessível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2007/april/documents/hf_ben-xvi_spe_20070422_university-pavia_po.html

[18] Op. Cit.

[19] Bento XVI, Discurso no encontro com o mundo acadêmico no salão de Vladislav do Castelo de Praga. 27 de setembro de 2009. Acessível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2009/september/documents/hf_ben-xvi_spe_20090927_mondo-accademico_po.html

[20] Idem.

[21] Idem

[22] Idem

[23] Idem

[24] 1º Encontro Europeu de Professores Universitários. Op. cit.

[25] Discurso na Universidade de Pavia. Op. cit.

[26] Discurso na Sede da Organização das Nações Unidas (ONU) para os Educadores Católicos. Nova York, 17 de abril de 2007. Acessível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2008/april/documents/hf_ben-xvi_spe_20080417_cath-univ-washington_po.html

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